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Nove gatos eletrocutados

Dois amigos conheceram-se por intermédio de suas esposas – um gordo, de média estatura e o outro, alto e delgado. Essas duas mulheres frequentavam as bancas de um cursinho preparatório para concurso, no turno da noite, alavancadas pelo intento de ingressarem no serviço público. Com o transcorrer dos dias, tornaram-se cúmplices e amigas, passando a sovar as apostilas, os livros, na companhia uma da outra, com incentivos e apoio recíprocos.

A amiga “A” convidou a amiga “B” para um jantar em seu apartamento, quando os respectivos maridos seriam então apresentados, haja vista que ambos eram advogados e muito bem referenciados por elas, as esposas. Outro aspecto em comum é que se tratava de homens probos e reconhecidamente seletivos na escolha de suas amizades, o que naturalmente causou um estado de elevado suspense nessas mulheres: será que existirá simpatia entre eles? Arriscar valeria à pena.

Não somente a simpatia como a empatia surgiram inexoravelmente. Das primeiras conversas, nas primeiras brincadeiras, surgiu uma afinidade prometedora, uma amizade com vistas ao sempre. A consequência disso, após alguns calorosos encontros, é que resolveram montar um escritório de advocacia, não sem a franca alegria de suas cônjuges.

Não permitiram elas o esmorecimento da ideia. Saíram incontinenti a fim de alugar uma sala no centro da cidade; compraram modestos móveis, ar-condicionado e até frigobar! A sociedade estava selada. O escritório era simplório, mas perfeito para um começo. As causas foram surgindo aos poucos e militavam tanto no fórum da capital como em algumas comarcas do interior. A honestidade, o respeito e a mútua admiração entre esses amigos eram mais do que garantidoras de uma vitoriosa parceria. Ademais, eles se complementavam nos atributos: o gordo era sistemático, organizado, o que fazia dele mais hesitante e mais moroso na preparação das peças; o magro, por sua vez, mais prático e objetivo, não tão perfeccionista, porém – uma dupla a guisa do côncavo e o convexo, em suma. De tão entusiasmados, chegaram a fotocopiar uma das notas do primeiro honorário – o desiderato era o de atrair sorte. Era divertido vê-los produzindo juntos, resolvendo os litígios, as pendências jurídicias dos clientes que os constituíam.

Certa feita, o Gordo e o Magro foram fazer audiência numa cidadezinha do interior alagoano. Ansiosos pelo sucesso da causa, estacionaram o carro em frente ao fórum e dispuseram os papéis em cima do capu para mais uma cuidadosa reprise da peça processual e de todas as provas documentais a serem colacionadas ao processo judicial. Uma catástrofe os entonteceu: a impiedosa ventania arrebatara-lhes todos os papéis. Resolutos, correram em socorro daquele lapidar trabalho. Todavia, não se olvide de que gordo é notadamente mais atrapalhado, ou seja, menos ágil! Nessa circunstância não foi diferente: no intuito de não deixar escapar uma folha que lhe estava ao alcance das mãos, o Gordo esquecera de que seus movimentos físicos dentro da roupa deveriam ser restritos e, ruuuupt, a calça do único terno usável descosturou a ponto de provocar uma desconcertante aparição da linha divisória de seus glúteos fartos. Não havia remédio, senão explodirem em gargalhada com o coro dos circunstantes ali estancados.

Quanto à audiência, não foi perdida. Ao contrário, a despeito desse hilário, senão trágico, revés, a causa encerrou-se num salutar acordo entre os litigantes. Mas, para disfarçar a mostra do que deveria estar guardado, o Gordo andara com as pernas irmanadas como se estivesse a sustar uma revolta intestinal, sendo ainda retaguardado pelo amigo delgado.

Simone Moura e Mendes
 
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Simone Moura e Mendes ESCRITO POR Simone Moura e Mendes Escritora
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