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OS “ILUMINADOS” DO SUL-MARAVILHA E OS APAGADOS DE ALAGOAS: Uma análise conteudista e crítica do painel de Viviani Duarte

• Atualizado

Ricardo Maia[1]

 

          “Os Iluminados” é um belíssimo painel plotado, construído pela artista plástica alagoana Viviani Duarte (1961-    ). Com todo charme cult, tal painel atualmente decora a sala de espera do Centro Cultural SESI Pajuçara. Mas seu conteúdo revela-se totalmente descompromissado com a luta, em Maceió, pelo reconhecimento dos produtores e produtos culturais alagoanos ou sobre Alagoas. Por isso, um anti-alagoanismo sintomático encontra-se plenamente manifestado nesta obra da artista. E também, é claro, no processo de criação desta. Ou seja, até mesmo quando ela pesquisou e escolheu, para reprodução estetizada, cartazes de filmes e figuras globais que iriam compor e “iluminar” sua obra aqui analisada. Aliás, filmes e figuras estas quase todas do eixo Rio-São Paulo.

          Sendo assim, ao longo da alguns metros de plotagem colorida em alta definição, representando uma película cinematográfica gigante, imaginada por Viviani Duarte, esses filmes e figuras, dispostos como se fossem fotogramas da mencionada película, encontram-se por sua vez sempre intercalados pela mesma representação fotogramática constituída pela reprodução de uma foto analógica de duas frestas diáfanas clicadas num ambiente escuro. Aliás, totalmente escuro. Na certa para aludir, com força representacional dialética, à antítese do título da referida obra. Ou seja, aos criativos “apagados” de Alagoas... Quase todos estes ― não fosse uma foto artística de Viviani na própria obra ― transformados ali, pela artista alagoana, numa espécie de ausências-presentes. Ou melhor, ocupantes-sem-lugar em sua criação.

          Por exemplo: no possível lugar do consagrado ator “alagoano” Paulo Gracindo (1911-1995), ou no de outros como Sadi Cabral (1906-1986) ou Jofre Soares (1917-1996), encontra-se o ator carioca Paulo Autran (1922-1986). Já no lugar que possivelmente seria de Linda Mascarenhas (1895-1991), de Eunice Pontes (1925-1976) ou de Anilda Leão (1923-2012) ― visibiliza-se apenas a atriz carioca Fernanda Montenegro representando, no palco, Simone de Beauvoir (1908-1986). Uma conjunção personalística que, apesar da consciência feminista cultivada por esta última e colhida pela primeira, não faz a arte de Viviani Duarte, no espaço simbólico de seu painel, deixar de reproduzir a predominância da ordem social masculinista que a vem constituindo há meio século. E que ela também, por sua vez, a constitui na pequena escala do cotidiano. Inclusive com seus excluídos e privilegiados.

          Agindo assim na construção de seu painel cult, Viviani Duarte inclusive deixa de homenagear a psiquiatra alagoana Nise da Silveira (1905-1999), que fundou no Rio de Janeiro o famoso Museu de Imagens do Inconsciente, para celebrar um de seus pacientes que mais se destacou, pela singular personalidade artística revelada, em sessões de arte-terapia. Em compensação, mas sempre destacando mais o sexo masculino na história da arte, a artista, que é também psicóloga atuante, celebra o premiado Querô, filme do psicólogo social paulista Carlos Cortez, que é baseado na obra do também paulista Plínio Marcos (1935-1999). “Querô”, o pária santista do longa de estréia de Cortez ― ou ainda Raimundo Nonato, um nordestino imigrante na cidade grande, do filme Estômago, de Marcos Jorge ― parecem de fato estar ali ocupando o lugar de Macabéa: a alagoana humilde e ingênua do livro A Hora da Estrela, de Clarice Lispector (1920-1977). E do primeiro filme de Suzana Amaral...

          Ora, em seu belo painel cinéfilo, a política de celebração anti-alagoanista (isto é, excessivamente cosmopolita), reproduzida por Viviani Duarte, não para por aí. Ela inclusive valoriza nele, de forma também culturalmente sintomática, alguns cartazes cinematográficos específicos. Por exemplo: no possível lugar do cartaz do filme Memórias do Cárcere, de Nelson Pereira do Santos, uma adaptação para o cinema do livro homônimo de Graciliano Ramos (1892-1953), um célebre escritor alagoano, verifica-se outro cartaz do igualmente memorável RIO 40° deste mesmo cineasta. Já no possível lugar do cartaz de Joana Francesa (personagem interpretada pela atriz européia Jeanne Moreau, no famoso filme do maceioense Cacá Diegues rodado em Alagoas), vê-se o cartaz do desenho animado Bienvenidos a Belleville, do francês Sylvain Chomet. Ou, ainda, a reprodução em fac-símile de um velho cartaz (ou filipeta?) do Cine-teatro Avisense. Por que não um do Teatro Deodoro?

          Neste sentido, repleto de cosmopolitismo cult, o título do painel de Viviani Duarte não só evoca implícitamente, no plural, o filme O Iluminado de Stanley Kubrick (1928-1999) como também não pluraliza, de modo mais justo ou suficiente, a naturalidade brasileira dos produtores e produtos que ela elege e “ilumina”, através de seu painel, reforçando assim em Maceió seus processos midiáticos (e/ou globais) de consagração social e cultural. Mas, pelo que tudo indica no referido painel, a única personalidade artística alagoana a merecer os holofotes do reconhecimento de Viviani é ela própria. Pois apenas seu próprio nome e o produto de sua criatividade são reproduzidos repetidas vezes. Seu nome, por exemplo, é impresso ad infinitum, em letras brancas do tipo Calibri (corpo), ao longo das extensas margens do supracitado painel.

          No total, são 56 (cinqüenta e seis) vezes que a assinatura da artista aparece ao lado do título de sua obra. Esta repetição autoreferente é o que, com efeito, transforma a arte de Viviani em artifício publicitário exclusivo e exclusivista a seu próprio serviço. Pois tal artifício, além de não celebrar de forma estética a criação e os criadores alagoanos, como um todo, reforça a produção de contra-conhecimento sobre história da arte em Alagoas. E, por conseguinte, a amnésia coletiva a este respeito dentro e fora do campo artístico local.

          Daí porque, ao invés de serem encontradas no painel de Viviani reproduções, em fac-símile, de capas ou páginas ilustradas de revistas de cultura alagoanas ― como, por exemplo, das revistas Dialética (de Marcos de Farias Costa) ou Urupema (de Jorge Barboza); ou, ainda, da revista Graciliano (uma excelente publicação mensal do Estado alagoano) ― encontramos, sim, um página do artigo La Semana de Tália produzida há décadas atrás pelo jornalista cultural espanhol (?) Santos Yubero ( ?  -  ? ). A reprodução de uma foto do polêmico Urinol invertido de Marcel Duchamp (1882-1968), obra icônica da pré-história do pós-modernismo em arte (1917), também ocupa, no referido painel, o possível lugar de uma boa foto dO Mijãozinho: escultura em bronze, do alagoano Lourenço Peixoto (  ?  -  ?  ), que já é há muito publicamente reconhecida em Maceió. Por sinal, em meados de 2011, o alagoano Fernando Pontes celebrou, pós-modernamente, as imagens mnemônica e fotográfica dO Mijãozinho numa exposição multimídia individual.

          Mas, ao que tudo indica no painel de Viviani: contanto que não sejam alagoanas, ou explicitamente alagoanas, não haveria de faltar referências a nordestinidade brasileira. Assim, ela celebra cinefilicamente o filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, do baiano Glauber Rocha (1939-1981), reproduzindo o cartaz do filme que traz a imagem em preto-e-branco do ator Othon Bastos numa cena deste. Como se sabe, o baiano Bastos inclusive protagonizou o filme São Bernando, de Leon Hirszman (1937-1987), baseado em obra homônima de Graciliano Ramos. E isso sem falar nos atores Antônio Fagundes e Átila Iório (1921-2002). O primeiro, contracenando com atores alagoanos em Deus é Brasileiro, de Cacá Diegues, no município de Penedo-AL às margens do São Francisco; e o segundo, em sua memorável interpretação do personagem Fabiano, no premiado filme Vidas Secas (1962), de Nelson Pereira dos Santos. Mais um filme de grande sucesso, deste notável cineasta paulista, baseado em livro homônimo do nosso Mestre “Graça”.

          Tantas vezes diante do painel de Viviani Duarte, depois da última reforma do Centro Cultural SESI Pajuçara, o(a) freqüentador(a) mais esclarecido(a) e crítico(a) é sempre ali levado por ele a se perguntar parafraseando o velho Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.): “Por que é tão difícil, quando não impossível, louvar os alagoanos entre alagoanos?”[2] Mas talvez seja esse o grande serviço que, às avessas ou à revelia da própria artista, seu belo painel passe a prestar contra a desmemória alienante da arte em Alagoas.

 

 

BIBLIOGRAFIA

BILLIG, Michael. Argumentando e pensando: uma abordagem retórica à psicologia social. Petrópolis: Vozes, 2008.

 

 

 



[1] É alagoano de Maceió, graduado em psicologia pelo CESMAC e mestre em psicologia social pela PUC-SP.

[2] Cf. Aristóteles citado por Michael Billig in Pensando e argumentando: uma abordagem retórica à psicologia social (Ed. Vozes, 2008, p. 38).

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Ricardo Maia ESCRITO POR Ricardo Maia Escritor
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