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Modelo de família

 

         Todas as manhãs, logo cedo, eu acordava na hora certa. Em minha casa não precisávamos de despertador. Desde que inventei de comprar um casal de periquitos australianos, por influência de minha sobrinha, Maria Clara, nunca mais foi necessário ligar despertador. Para que despertador se o relógio de Deus colocado no instinto dos pássaros nunca falhava? Podia fazer chuva ou sol; inverno ou verão, frio ou calor, não importava o clima, lá estavam eles a cantar logo no comecinho das manhãs como arautos do tempo. Bia e Vítor eram os nomes deles. Maria Clara quem os denominou.

         Bia e Vítor foram, na gaiola, amadurecendo aos poucos. Passaram-se um mês, dois, três... Alguns meses. Bia já não mais estava resistindo as “cantadas” de Vítor e enamorou-se dele profundamente. Era comum encontrá-los dividindo carícias, namoricos e tudo o mais em matéria de galanteios. Como seria inevitável, Bia engravidou e começou a por ovos. Um, dois, três, quatro... Sete ovos.

         Passaram-se mais alguns meses e eis que sete filhotes já reclamavam por comida. Vítor, todo orgulhoso da prole bonita, não media esforços para ajudar a companheira na difícil tarefa de todos os dias alimentar a descendência. Surgiram filhotes verdes, brancos, azuis, amarelos, brancos com preto e por aí. Lindos. Era interessante ver a dedicação do casal para com os filhos. Quando não tinha comida na gaiola, eles simplesmente botavam a boca no trombone em gritos histéricos e loucos. Os filhos reclamando por alimento e eles, em dialeto de pássaros, exigindo que o dono providenciasse logo o alimento dos pequenos. Muitas vezes, vendo eu o desespero dos pais, esquecia até de mim, para logo cuidar de abastecer a gaiola de provimentos. Algumas vezes Vítor só faltava pular em cima de minha mão, quando eu introduzia o alimento na gaiola. Depois de abastecida, ficava eu a observar o comportamento deles. Assim que a comida era fornecida, Vítor dava alguns chamados e logo Bia saía do ninho para o ajudar a armazenar a comida que seria regurgitada na garganta dos miudinhos.

         Numa pressa interessante, os dois fincavam a cabeça no pequeno cocho sempre com o cuidado de ver se não existia nenhuma ameaça aos filhotes. Primeiro ia Vítor regurgitar o alimento; depois, era a vez de Bia. Iam e vinham, vinham e iam, numa seqüência ininterrupta até que os pequenos paravam de reclamar e se satisfaziam. Bia, então, saía da casinha e sentava no poleiro, junto do marido, reclamando dele a ausência de carinho. Ele, por sua vez, para fazer a média, dava-lhe alguns beijos e a alimentava, como se ela fosse um filhote. Depois disso, saía ela toda feliz para junto dos pequenos. Dentro do cumbuco ficaria horas e horas, protegendo os filhos da frieza e cobrindo-os com o manto de suas asas. Vez por outra, com a ajuda do marido, fazia uma faxina geral na casa. Na maioria das vezes, enquanto ela cuidava dos filhotes, Vítor ficava só, inventando de fazer alguma coisa para não ser consumido pelo tédio e pela ociosidade. Futucava a parede, tomava um banho, batia freneticamente as asas em exercícios, comia mais um pouco, cantava feliz com o destino que lhe fora reservado por Deus. Durante muitos dias essa foi a rotina do casal Bia e Vítor.

Os filhos começaram a crescer, ganhar ares adolescentes, engrossar o canto. Olhavam de soslaio pela abertura do cumbuco e recolhiam-se ao interior quando alguém se aproximava. Se um gato passava perto, lá estava Bia para fazer um barulho terrível, alertando da iminência de perigo. Os garotos e garotas iam crescendo, crescendo, ficando bonitos.

         — Aquele é a minha cara! — dizia Vítor em linguajar de pássaros para Bia.

         — Mas é convencido! Parece sim, comigo! E caiam numa cantoria combinada com vôos e acrobacias. A felicidade reinava naquela gaiola. Dos sete nascidos, quatro já viviam implicando com os pais dizendo que não mais queriam ser alimentados pelos genitores. Eles mesmos queriam se alimentar sozinhos, afinal, já eram quase adultos. Espírito de independência juvenil. Vítor olhava tudo com desconfiança, buscando uma maneira de aceitar o novo comportamento dos filhos. Bia era mais paciente, limitava-se a sentar no poleiro e observar a evolução do crescimento da filharada.

         Um “belo” dia, terminando eu de abastecer a gaiola deles, resolvi dar um pulo no mercado para comprar alguma coisa. Deixei-os cantando e fazendo o maior alarido dentro da gaiola. Levei nisso apenas uns cinco minutos. Quando voltei e dirigi-me ao quintal, onde ficava a gaiola, eis que vi um espetáculo aterrador: a gaiola despencara do alto, não sei como. Um acidente, grave acidente, terrível acidente. No chão, apenas aquilo que restou da família alegre de Bia e Vítor. Sangue aspergido sobre o quintal. Vítor, talvez num assomo de desespero, voou para terras longínquas. Nunca mais voltou. Bia, presa sob a grade de ferro da gaiola e com uma asa ferida, nada podia fazer para salvar da morte o primogênito, que agonizava de dor. O branquinho com pintas pretas também acompanhou o pai no vôo ao desconhecido. Uns se debatiam, outros tentavam desesperadamente alçar vôo para longe daquela gaiola assassina. O mais novinho, junto do irmão que agonizava, tentava entender o que era aquele líquido vermelho que saía do rosto do irmão. Mas, o pobrezinho nada podia explicar-lhe, porque já estava morto.

         Com paciência, saí recolhendo um por um, numa tristeza lacônica. Coloquei-os todos dentro da gaiola outra vez. Eles se olhavam estranhamente, tristemente, perplexamente... Nenhum ousou emitir piado. A alegria de minutos atrás se esvaiu. Olhavam-se e não tinham “palavras” para consolar uns aos outros. Estavam sobremaneira sentidos pela tragédia.

         Do outro lado da rua ouve-se o canto de outros pássaros. Mas esses cânticos não contagiam mais aquela gaiola que fora o lar feliz de Vítor e Bia.

Nesse momento em que escrevo, Bia, sentada sozinha em seu poleiro, chama pelo marido. Mas ele não vem, ele não virá. Ele se foi... Para sempre.

Talvez, os poucos descendentes que restaram da família de Vítor e Bia possam no futuro gerar uma matriz que relembre o belo e encantador pássaro que foi Vítor: sempre galhofeiro, sempre brincalhão, sempre fiel à companheira. Que nunca mediu esforços para ajudá-la nos momentos mais difíceis. Vítor hoje está no paraíso dos pássaros, talvez cantando, ou talvez chorando por não ter tido a sorte de ver crescidos seus filhos tão belos e queridos.

Hoje, resta apenas uma “viúva” saudosa de um marido que a completou em tudo, que a protegeu em tudo, que nunca faltou com a responsabilidade de ser um pai. Vítor se foi, mas Bia continua, mesmo que sozinha, a ver nos sobreviventes, tangíveis traços daquele que lhe fora o maior marido do mundo.

 

ErisvaldoVieira, 28 de agosto de 2004.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Erisvaldo Vieira ESCRITO POR Erisvaldo Vieira Escritor
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