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A sorte de um lanceiro

Jovem e idealista foi investido, mediante concurso, na nobilitante missão de servir ao público. Ele, sim, daria a mais equidosa contraprestação ao salário auferido à custa dos impostos pagos pelo contribuinte. Cumpriria os despachos dos juízes até o processo chegar a termo, imprimindo celeridade em todos os atos que praticasse.

Com o correr dos anos, foi sendo acossado pela fastidiosa sensação de “enxugar gelo”, inerente aos servidores lotados na Primeira Instância, que como um vírus, vitima um a um desses bravos combatentes.  Vislumbrou, então, o fastígio no Judiciário, o quê não lograria senão ao preço de muito estudo. O ilustríssimo Técnico Judiciário, algum dia, passaria a ser tratado como Vossa Excelência, ninguém duvidasse!

Enxergara, pois, na titularização de uma magistrada e sua consequente remoção para uma unidade do interior, local onde dificilmente alguém iria espontaneamente, uma oportunidade de encontrar um remanso que lhe propiciasse tempo para mergulhos num conhecimento mais verticalizado das leis, doutrina e jurisprudência. “Eu me habilito a acompanhá-la, doutora”. A magistrada, pessoa tocada de grande humanidade, quis fazê-lo ponderar, embora laborasse na contramão dos próprios interesses funcionais, eis que lhe era imprescindível o acompanhamento de um assistente, sobremodo, com aquele vigor. Pensara, então: “fiz minha parte de ser humano, mas ele já está até portando a CLT comentada, de Valentin Carrion”.

Desiludiu-se. Ele ficara depauperado no mais redundante dos seus enganos. Os processos multiplicavam-se como se por meio de geração espontânea- a tal da abiogênese que conhecera nos preliminares estudos de biologia. Diga-se, que a máquina Olivetti Linea 88, seu instrumento de trabalho, impronunciava qualquer elementar ideia de um computador. As sentenças eram datilografadas em quatro vias, graças ao carbono que intercalava as folhas. Retornava ao lar em adiantada hora da noite, quando seus filhos já estavam dormindo; saía quando eles não haviam acordado. Sofria com a solidão por que amargava a jovem esposa. Contudo, sua inquebrantável fé tornava-o submisso a essa conjuntura.

Os conhecimentos precários que lhe foram possíveis obter com a diuturna produção de despachos, conduziram-no até a prova de sentença num concurso para a magistratura. Esse feito ecoou pelos corredores do Tribunal com vertiginosa velocidade. Estava, portanto, creditado a almejar uma colocação na Segunda Instância, considerando que sua pessoa passara a ser cobiçada por vários gabinetes, devido ao potencial inferido para a produção de votos.

Não vacilou diante do primeiro convite. Pôs a CLT e alguns poucos pertences na mochila e rumou ao novo mundo. Nos primeiros meses no novel reduto, foi-lhe força  constatar a verossimilhança, tantas vezes resistida por seu idealismo servil, da comparação escutada com certa frequência:  “trabalhar nesse órgão do Judiciário Federal é como estar numa batalha medieval, onde os lanceiros, aqueles que lutavam no corpo a corpo, na linha de frente, estão na Primeira Instância, enquanto os arqueiros, aqueles que disparam flechas em cima do muro das fortificações, estão na Segunda Instância”.

Ele, por seu turno, teve a certeza de que Deus jamais abandonaria um “bom pastor”.

Simone Moura e Mendes

Publicada em O Jornal, edição de 04/09/2012.

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Simone Moura e Mendes ESCRITO POR Simone Moura e Mendes Escritora
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