Tema Acessibilidade

O SONHADOR

• Atualizado

O SONHADOR

 

Trabalhava muito. Acordava logo cedinho, lá pelas quatro e trinta ou cinco horas da manhã. Como de costume, lavava o rosto, escovava os dentes e esperava que a mãe lhe fritasse dois ou três ovos grandes, graúdos. Era sempre assim, uma rotina de20 e poucos anos. Feita a pequena refeição recheada de substâncias energéticas partia para abrir o pequeno estabelecimento. Vendia sanduíches e destiladas lá no comércio. Durante o caminho pensava em ser rico. Queria ganhar dinheiro e comprar uma moto. Quem sabe seria até um carro. Sim, um carro, ouvira falar que um jovem em Brasília tirara a sorte grande e que ficou rico assim, de repente. Bicho de sorte! – refletia. A calçada estava úmida, molhada, era inverno. Um inverno agora lhe invadia a alma. Pensava na moto que sonhava ter, no carro que nunca teve. “Bolas, até aquele cara chato do Zé já tem um carrinho e eu nada! Mas vou trabalhar, trabalhar até conseguir juntar um pouco de dinheiro e comprar uma moto; sorte mesmo é o Ronaldinho da seleção, ganha quase 50 mil reais por dia! Com um dinheiro desses eu... — sorri sozinho, olha para os lados para ver se alguém o viu rindo sozinho, podem pensar que está doido. Procura se controlar. “Cinqüenta mil reais por dia!?” Isso é um absurdo! Não ganho esse dinheiro nem em 20 anos de serviço e ele ganha isso em apenas um dia! Isso é um absurdo! 

Essa comparação lhe trouxe uma tristeza imensa. Olhou para si, para suas roupas, pensou em sua casa, em seus irmãos, alguns ainda estavam desempregados... 50 mil reais por dia! Olhou novamente para si, colocou a mão no bolso puxou 10 reais e mais umas duas pratinhas... Sentiu um desassossego no coração cheio de válvulas. O caminho se agigantava, agora sentia os pés úmidos pela água da chuva. “Se eu ganhasse pelo menos 1% do que Ronaldinho ganha andaria era de carro. Não precisava me acordar de madrugada com os pardais”. “Por que será que as coisas têm que ser assim”? Por que o pobre trabalhador dá um duro danado e não passa de um pobre? Por que será que a pobreza existe? Por que muitos com tudo e muitos sem nada? Passava naquele instante um carrão importado em grande velocidade, uma poça d’água no caminho e água para todo lado. Nosso amigo pensador toma um banho de lama. “Desgraça, será que esse infeliz não olha por onde anda”? Ameaçou chamar-lhe alguns palavrões bem sonoros, desistiu da idéia, o carro era importado e, certamente, dentro dele almas importantes o dirigiam. Era burrice mexer com gente importante assim, sempre tinham razão. Se mexesse com gente dessa laia, polícia aparecia e, mesmo com a razão, não a teria. A corda sempre arrebenta do lado do mais fraco, reflete.

Nosso jovem continuou a caminhar em direção a seu pequeno ponto de comércio, vendia sanduíches. Sanduíches e destiladas. Passando numa pequena rua estreita e fria e de casas muito humildes vê deitado um mendigo. O infeliz está deitado no chão molhado. Sem camisa, deixa ver as costas manchadas por um risco de sangue, possivelmente teria levado uma queda no auge da cachaça. Sorte ainda estar ali vivo. Fosse outra cidade os carcarás da civilização já o teriam devorado. A palavra civilização trouxe-lhe lembranças dos tempos de juventude. Recordou-se dos tempos de colégio, dumas aulas de literatura que falavam acerca da futilidade das coisas da vida e da necessidade de aproveitá-la ao máximo. Com muito esforço, lembrou-se que se tratava da segunda geração do Romantismo brasileiro; a figura principal era um cidadão por nome Álvares de Azevedo que recebera a influência de escritor famoso internacional, um tal de Goethe. Depois da referida influência do escrevedor de cartas apaixonadas, o tal de Goethe, que morreu por amor enlouquecido por uma mulher, o pobre Álvares de Azevedo não sentia mais a vida como algo real e sim, algo inatingível. Coisa de louco. Como pode um homem morrer louco de amor por uma mulher!? – refletia. A esse pensamento associou a imagem deprimente daquele bêbado prostrado que vira há pouco deitado na lama e sem camisa. Teria sido a mesma coisa? Teria o homem bebido até desfalecer pensando em uma mulher? Precisava tomar cuidado, era perigoso pensar nas mulheres como seres idealizados, preferiria Machado de Assis a Álvares de Azevedo. Com certeza aquele homem miserável tinha pensado em uma mulher, tinha pedido a dita cuja em namoro ou casamento, ou qualquer coisa assim. Com certeza também levara um não sonoro e, na fraqueza, enchera a cara até altas horas. “Bem feito, quem mandou idealizar”?

Chega ao trabalho, enfim! Levanta a pequena porta do estabelecimento. Cinco minutos depois chega seu Mané, vigia de uma construção ali próxima. Traz na face sinais visíveis de cansaço e sono.

— Tem um cafezinho aí, Tonho? — pergunta o pobre vigia. 

— Cheguei agora seu Mané. Quer esperar? Faço ligeirinho, também tou doido por

um cafezinho. Era sempre assim, todos os dias. Todo dia seu Mané chegava naquela hora e pedia-lhe um cafezinho. Botavam as notíciasem dia. Discutiampolítica, futebol, filmes que tinham assistido um dia anterior. Era sempre assim, sempre. O vocabulário de seu Mané era escasso, sumido, sem expressividade vernácula pelas leis gramaticais, todavia se enchia de significado naquela perenidade e começo das manhãs. Se Tonho chegasse ali e seu Mané não aparecesse, certamente algo de errado teria acontecido. Tudo era como sempre, nenhuma grande novidade, só algumas caras estranhas que passavam por ali apressadas com enormes malas nas mãos. Chega o entregador de ovos. O entregador de pão. O entregador de leite. “Aquela biscaia da Maria já tá saindo de dentro de mais um carro, mulher da vida fulera”, pensam os dois a observando. Tonho passa dois ovos na manteiga, enche um pão com eles.

            — Qués, Mané?

— Quero não, ave Maria, tu come muito ovo, rapaz! Isso tem um colesteró dos diacho.

            — Que nada, Mané, isso é conversa de médico metido a sabido, responde Tonho traçando dois suculentos e mal passados ovos. Era sua comida de todas as manhãs, naquele dia passara dos limites e comera quatro, contando com os dois que comera quando saíra de casa. Era sempre assim, sempre. Olhou para a fisionomia de seu Mané e teve raiva dele. Como podia ser assim tão simples e não ter na vida ambição nenhuma? Será que não enxergava que ao seu redor pessoas existiam com muito dinheiro? Será que já desejou um dia ser rico, ou pelo menos se livrar daquele casacão surrado que sempre usava? Será que nunca pensou em ter um carrinho para facilitar-lhe a vida? Como pode um indivíduo nascer nessa terra e viver acreditando que vivemos no “melhor dos mundos possíveis”, como já dizia o grande escritor Voltaire em seu livro Cândido? Tonho não entendia também o porquê de ele ter nas costas 11 anos de estudos sem repetir nenhum, e ainda lembrando de muita coisa, ter que viver vendendo pastel e sanduíches. Sentiu-se pior que o vigia, este pelo menos era ignorante e aprendera a aceitar sua miséria de vida; aquele vivia num mar de questionamentos, sempre se recusando a aceitar sua vida desditosa. Apenas assando e comendo a carne de quinta categoria carregada de grandes pedaços de uma gordura amarelinha e escorregadia. Assando e comendo, assando e comendo... Muitas vezes nem assando e muito menos comendo. Voltou a pensar em Ronaldinho da seleção brasileira! Escândalo! Isso é um escândalo! Repetia em voz baixa circulando de um canto a outro em seu minúsculo comércio. “Ainda dizem que quem estuda vive bem! Ora, conversa pra boi dormir!, quem vive bem mesmo é jogador de futebol”. Olhava com desdita uma menina metida a importante que passava naquele momento. “Só quer ser as coisa, essa coitada, não tem nem onde cair morta e fica num rebolo desses”! disse de si para consigo mesmo. “Mas se eu tivesse 1% do salário daquele Nazário eu seria feliz. Queria ver quem aqui nessa cidade não ia querer namorar comigo, mas se estão pensando que eu iria querer qualquer uma estão muito enganados, eu ia arrumar logo era um filezão desses de parar trânsito. Eu sei que a dita cuja só ia me querer por causa do dinheiro, mas e eu com isso? Quantos famosos não vivem assim? Só por dinheiro? Ora, o dinheiro é a mola do mundo!” Sente com essas últimas reflexões algumas ondas de otimismo percorrer-lhe o corpo, como uma energia positiva circulando-lhe pelo espírito, energizando-lhe as esperanças de um dia ter um futuro melhor. “Bota aí uma cachaça!”, pede um bebinho da vizinhança.

            — Mas tu já tais bebo de novo!? — reclama Tonho.

            — Bota uma cachaça aí... Tenho dinheiro. Diz isso tirando de um velho e sujo bolso uma nota de um real toda amassada e molhada. Zé bebinho já se tornara uma figura folclórica na cidade. Baixinho abusado, era um neurastênico confesso. De baixa estatura, focinho de tatu, cabelos no melhor estilo curumim, pele morena escura, andava parecendo um macaco pronto para uma briga.

            — Cadê a cachaça!? — Reclama novamente pela demora.

— Tu ainda vai morrer disso! – observa Tonho colocando o copo sobre o balcão. O Bebinho não se faz de rogado. De uma única golada bebe tudo.

— Eita peste, essa tá cá gôta! Lambe os beiços com a parte posterior da mão, assua o nariz sem nenhuma cerimônia e se manda pela calçada com seu andar de macaco encurvado, estralando os dedos. Vai em busca de mais uma pinga por aí. Era sempre assim.

— Um infeliz desses não morre! E têm tantos por aí morrendo... Muitos por aí não bebem, não fumam, não têm vícios nenhum e de repente, blufto! Caem duros! — observa Tonho sendo taxativo.

O dia terminara como sempre, o apurado foi pouco, bem pouco. Após contar o ganho do dia, Tonho põe-se a fechar a porta do seu comércio. Vai para casa, até que enfim. Durante o trajeto, a cada passada, desfila em sua mente, imagens do dia. As poças d’água, o mal educado que o molhou, o bêbado de costas nuas deitado no chão molhado, o vigia, o outro Bebinho, coisinhas pequenas, insignificantes, mas que era a sua rotina. Mas de todas as coisas que tanto vira, presenciara e dissera, uma não saía de sua consciência de jeito nenhum: um só sujeito ganhar quase cinqüenta mil por dia e ele trabalhando o dia inteiro para ganhar aquela miséria... Uma vergonha, uma desumanidade, como esse mundo poderia ser justo, permitindo uma desumanidade dessas? Cinqüenta mil reais por dia para uma só pessoa... Isso é um absurdo!

Tonho, após tomar o seu banho diário e comer seus tradicionais ovos de galinha fritos, deitou-se e dormiu um longo sono. Acordaria num mundo repleto de dólares, automóveis, motos, mulheres bonitas, casas de luxo com piscina e tudo; mas, nada disso tinha mais valor para ele, pois no mundo em que acordou, o maior valor agora era a salvação de sua alma. Descansou de sua angústia existencial, foi vender sanduíches aos anjos e quem sabe, cachaça aos anjos decaídos. Morrera não completando nem 30 anos de idade. Entupimento de uma veia. Gorduraem excesso. Fatalidade. Emais um pensador de si mesmo e da vida se despedia logo cedo sem ter realizado nenhum dos seus mais intrínsecos e normais sonhos: ser feliz.

 

É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã, porque se você parar pra pensar na verdade, não há... Me diz, por que que o céu é azul? (Renato Russo)

Attachment Image
Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons. Você pode copiar, distribuir, exibir, executar, desde que seja dado crédito ao autor original. Você não pode fazer uso comercial desta obra. Você não pode criar obras derivadas.
0
1 mil visualizações •
Atualizado em
Denuncie conteúdo abusivo
Erisvaldo Vieira ESCRITO POR Erisvaldo Vieira Escritor
Palmeira dos Índios - AL

Membro desde Julho de 2012

Comentários

Graçinha Barbosa
Graçinha Barbosa

"Adorei... Muito Bom"!