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Esse foi Barra Limpa...

Diz-se, não se sabe ao certo, que ele fora abandonado pela mãe quando criança, e, desde então, deu pernadas no mundo, falando poucas coisas inteligíveis ao longo do incerto itinerário. Não se podia mensurar aonde começava sua peregrinação diária ou aonde terminaria. Parecia ter o dom da ubiquidade, uma vez que sua aparição era aludida por muitos dos moradores de vasta porção litorânea da capital pernambucana. Tratava-se de um andarilho sem existência civil, sem eira nem beira, sem teto, sequer. Seu telhado era o relento, ornamentado pela lua.

Inclusive, ela, uma certa menininha serelepe, que residira na Rua Capitão Rebelinho – aquele logradouro que, ao sul, terminava no “muro azul”, iniciando, ao norte, perpendicular à Av. Herculano Bandeira -, lembra-se dos tempos em que costumava anunciar: olhem, lá vem o Barra Limpa! Não se omitia de levantar-lhe o dedinho polegar, num sinal de “tudo legal”, Barra? Era por ele retribuída com um sorriso que não serviria para divulgar uma marca de pasta de dente; porém, se lhe refletia a puerilidade latente.

Todos os dias, invariavelmente, percorria os tantos corredores urbanos do Pina e de Boa Viagem, quase sempre a portar um ciscador, enxada, estrovenga e, na cabeça, um esfiapado chapéu de palha. Não temia que sua figura maltrapilha e coberta de andrajos, de barba e cabelos desgrenhados e em guerra com a higiene, pudesse suscitar qualquer insulto, destrato de outrem, de outros inquilinos do cosmo, espécies humanas iguais a si, na verdade.

Ao contrário, seu magnetismo fazia com que atraísse, não só a simpatia, a idolatria das crianças, como também a benevolência dos adultos. Não faltava quem lhe ofertasse um prato com comida, um copo com água; ou mesmo quem remunerasse os seus serviços de capinação. Decerto, de sua aura emanava luz, de onde deveria decorrer a alcunha “Barra Limpa”. Ou seja: limpo na essência.

Nas festas populares, fala-se que costumava desfilar trajado nas vestes inservíveis, as que iam sendo abandonadas pelos foliões alcoolizados. Juízo, tino, senso, discernimento, consciência das próprias escolhas, referências existenciais, não se pode afirmar que os detivera um dia. Não foi preciso tê-los. Ele parecia feliz...

Não houvera tempo de ser reconhecido como representante do MST dos pobres, como quisera alguns idealistas, eis que, por insídia ou ironia do destino, em que pese seu pavor à água, afogara-se (?) na Praia do Pina, tendo seu corpo inerte sido localizado no Rio Capibaribe, nas proximidades do Cais de Santa Rita; isso, consoante noticiado nas redes sociais. Certamente, fora cantar “olê, olá, o Barra Limpa vem aí” numa dimensão etérea.

Esse foi o Barra Limpa: uma criatura folclórica que os habitantes do Pina e de Boa Viagem, pobres e ricos, nascidos entre os anos 70 ou 80, jamais esquecerão.

Simone Moura e Mendes

www.simonemouramendes.com

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Simone Moura e Mendes ESCRITO POR Simone Moura e Mendes Escritora
Maceió - AL

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Comentários

Ron Perlim
Ron Perlim

O estar neste mundo é complexo. Cada pessoa tem uma história, conhecida como psicosocial. Você nos dar pista da personagem quando diz:"Diz-se, não se sabe ao certo, que ele fora abandonado pela mãe quando criança, e, desde então, deu pernadas no mundo, falando poucas coisas inteligíveis ao longo do incerto itinerário". É lamentável quando pessoas são postas no mundo e logo cedinho são rejeitadas. De qualquer forma, o texto propõe reflexões em torno do abandono,das personalidades inusitadas, da vida e morte, dos problemas de saúde pública, dos humanos. Valeu!