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OS ÍMPIOS

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Houve um estrondo e depois um clarão, seguido de um estremecimento de terra no dia em que eles chegaram. Nós não sabíamos bem de onde eles eram, nem como eram realmente, mas a uma primeira vista eles pareciam muito com nós mesmos, ou seja, com seres humanos. Eram mais altos que a maioria de nós, muito claros, com olhos puxando paro o violeta e cabelos loiros quase brancos. Não eram bonitos nem feios, e eram todos iguais, todos com a mesma cara e com a mesma roupa, uma espécie de túnica, longa e escura. Eles também usavam um chapéu escuro e poucas vezes o tiravam. Sabiam falar como nós e usavam isso ao seu favor. Foi assim que foram batendo de porta em porta e pedindo para entrarem.

Eles sabiam falar de uma forma muito persuasiva e por isso conseguiam convencer os moradores das casas a acolherem eles. Contavam histórias, diziam que foram expulsos de suas terras, que não tinham onde ficar e precisam de um lar temporário, e a ajuda daqueles que se despusessem a acolhê-los seria recompensada com uma quantidade infinita de tesouros quando o reino deles chegasse.

Eu estava na casa da minha irmã nesse tempo. Estava morando com ela, seu marido e seus filhos quando recebemos um deles. Eu fui contra, mas eles não me ouviram, foram seduzidos por aquela criatura ardilosa. E ela foi ficando lá por dias e dias incontáveis, sempre a nos observar e a nos surpreender com seus olhares profundos, como se entrasse na nossa alma.

Com pouco tempo, as pessoas começaram a agir como se eles nem existissem. Eles eram como seres invisíveis que habitavam suas casas e que nunca se dirigiam a eles. Era muito difícil ouvi-los falando, mas muito fácil pegá-los nos observando. Às vezes, tínhamos aquela assustadora impressão de que eles podiam descobrir todos os nossos segredos e desejos mais tortuosos, o que nos deixava aflitos. Um medo estranho começou a tomar conta de nós.

- Serão eles os juízes de Deus? Serão eles os seres que em nome do Senhor decidirão se teremos ou não o direito a vida eterna? - perguntou a minha irmã uma certa noite. E eu temi que ela estivesse certa.

Os dias continuaram passando, e as pessoas passaram a tratar seus hóspedes com ainda menos interesse do que vinham demostrando até então. Eles lhes davam os restos das comidas que tinham, e, como o mundo já não era mais o mesmo, pois o sol já quase nem brilhava pelo céu sempre coberto por nuvens cinzas e carregadas de chuva, as pessoas começaram a lhes culpar pelas desgraças que lhes estavam acontecendo. É claro que elas não lhe falavam abertamente sobre isso, mas elas sentiam dentro de si que eles eram os grandes culpados e por isso se revoltavam por dentro. De repente, era como se elas não fossem mais elas, como se uma estranha loucura e um brilho de perversidade incontida irradiasse do âmago delas.

Em questão de um par de dias, eu me vi obrigada a dizer à minha irmã que devíamos ter cuidado com os nossos vizinhos, que todos eles estavam enlouquecendo, mas ela não quis acreditar. Então, foi uma surpresa para ela, embora não tenha sido para mim, quando vários de nossos vizinhos passaram a agir de maneira irracional. Não era só o acordar com algum estranho e forte grito humano que nos incomodava, mas o barulho de suas estranhas festas, comemorações que duravam horas e horas e que eram seguidas de músicas que muitas vezes não pareciam combinar, ter rima ou ritmo, além de serem proferidas em alguma língua desconhecida. Depois soube que eles cantavam em sânscrito, embora, se lhes fosse perguntado, eles diriam que não tinham ideia do que estavam cantando, até por que essa era uma língua morta.

Os suicídios e assassinatos também começaram a se torna comuns. Uma boa parte dos nossos vizinhos já estava morta, e nós, como os poucos que ainda estavam vivos, fazíamos questão de não nos misturarmos. Só saíamos para pegar água e comida, coisas que estavam escasseando, e não tínhamos mais energia ou internet. Enfim, o mundo era um caos terrível e primitivo. Foi aí que eu tive certeza de para que eles vieram e qual era o objetivo deles.

- Esse é o propósito deles, acabar com toda a vida humana. Vocês não veem? Nós temos que expulsá-los.

Dito isto, um deles, o que vivia conosco, ajoelhou-se, levantou as mãos, como quem clama para Deus, e disse:

- Todos os ímpios estão caindo e sua justiça está finalmente sendo feita!

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Talita Maciel ESCRITO POR Talita Maciel Escritora
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