Meu xodó.
Nestas linhas mal traçadas falo aqui do meu xodó, um pé de acerola que cultivei por muitos anos em frente a varanda dos fundos no meu quintal.
Em princípio o desejo era ter uma árvore frutífera que entregasse além do fruto uma sombra agradável nos dias de sol quente, sobretudo no verão. Imaginando ter problema com as raízes daquela que viria a ser a escolhida, com antecedência cuidei de definir e preparar o local onde ela seria plantada. Feito isso abri um buraco no chão de cimento, cavei 1,10m de fundura e nele enterrei um manilhão de concreto armado, depois, cheio de terra adubada, só faltava conseguir o pé de fruta adequado.
Não tardou para a vizinha, uma senhora generosa com quem temos bom relacionamento, oferecer-nos uma muda de acerola. Nem pensei duas vezes, afastei a terra para um lado e outro e acomodei o broto no centro da boca da manilha reforçada. Ela cresceu com o meu cuidado de lhe negar a sua condição de arbusto, podava-lhe todos os galhos que brotavam até que atingiu altura suficiente para se expandir no entorno acima e sem atrapalhar a nossa circulação embaixo. Tornou-se uma árvore autêntica como qualquer outra, com raízes, tronco despido e carregada de muitos galhos e folhas na parte superior. E ficou realmente linda, exuberante, deixava todos os que a conheciam maravilhados. Dava orgulho ouvir tantos elogios.
Depois de árvore formada e fazendo sombra, uma curiosidade bem peculiar da aceroleira era a quantidade absurda de folhas que caiam ao chão e que eu era obrigado a varrer todos os dias, de manhã, após o café e, de tarde, antes do anoitecer. Nos dias de tempestade não podia esquecer de destampar o ralo no pátio, pois o vento e a chuva derrubavam muitas folhas que, arrastadas pela água, bloqueavam a tampa gradeada e inundava tudo ao redor.
Quando produzia, não faltava jarra de suco na geladeira, era tanto fruto, que não dávamos conta de comer, por isso enchíamos sacos plásticos com mais de quilo e meio de acerola e oferecíamos aos parentes, vizinhos, e, quando não, ao primeiro passante subindo ou descendo a calçada em frente ao portão da rua.
Um detalhe admirado por todos é que a maioria das acerolas eram grandonas, o dobro do tamanho de uma fruta normal, principalmente as que vingavam na primeira florada. Esta nem terminava a frutificação e já era seguida por outra, razão para juntar flores e frutos no mesmo pé. E isso acontecia três vezes ao ano.
Um dia reparei que muitos pardais, rolinhas e algumas cambaxirras faziam da árvore um ponto de parada obrigatória para comer insetos, e que o bem-te-vi engolia as frutas menores quando maduras, diante disso tive a ideia de acomodar uma vasilha com água no meio dos galhos, tornou-se o bebedouro da galera e local de banho irrestrito para todos, as cambacicas principalmente. Acho que eles curtiam de verdade descansar e até namorar, por que não, empoleirados nos galhos do pé de acerola; pra mim era um grande prazer vê-los reunidos. Certa manhã acordei cedo e bem na hora em que os pardais faziam uma algazarra absoluta; era uma perseguição tresloucada de uns com os outros de galho em galho - não sei se por causa de briga de gangs rivais -, acompanhados de uma gritaria fortíssima, lembrava a quadra de escola do ensino fundamental repleta de crianças no horário do recreio, idêntica gritaria, parecidíssimo. Com toda aquela bagunça levantei da cama alegre, numa felicidade vibrante, tomado de energia e pronto para encarar qualquer serviço. Desde então passei a me preocupar além da árvore, também com as aves que ali curtiam abrigar-se do sol ou descansar ou mesmo só beber um gole d'água. Faço questão de deixar registrado que houveram outras manhãs de brigalhadas como aquela dos pardais, inúmeras, e que sempre me causaram semelhante efeito, enorme deleite.
Foram muitos anos nessa convivência barulhenta, gostosa e harmoniosa com a natureza, até que o pé de acerola começou a sofrer reveses com a chegada das cochonilhas, uma praga terrível que, nos últimos anos, atacou a aceroleira com virulência até que ela não mais resistiu. Fizemos numerosas tentativas para salvá-la, infelizmente fracassadas.
No momento sua aparência é catastrófica, fantasmagórica, está irreconhecível, inteiramente desfolhada, ressecada e enegrecida, suas cascas estão soltas e caindo... Só alguns pardais, vez por outra, ainda se aventuram de pousar nos galhos secos para beber um gole d'água, e as cambacicas para matar a sede e tomar banho, fato esse, cada dia mais raro. Sem as folhas, eu penso que eles têm medo de ficar expostos.
Fiz pedido na secretaria de meio ambiente do bairro para mandarem uma equipe tosar, rente ao chão, o tronco da árvore morta. Já de algum tempo que sinto a falta de seus frutos, da sua sombra e também dos passarinhos. Felizmente, de algum fruto que caiu no pé, dessa que parte, outra muda brotou e vem crescendo revigorada; é, com certeza, o legado de quando a aceroleira produziu pela última vez. Vocês não imaginam a minha animação ao ver o rebento, com as folhas ainda miúdas, brotando entre os seixos que ornamentam a boca do manilhão. Com ele pretendo recomeçar outra jornada, que desejo seja tão proveitosa quanto esta da qual eu me despeço. Termino aqui com meu velho coração apertado.
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