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Indefectível.

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Para quem não tem medo ou preconceito para falar do assunto continua:

A Morte trajando preto de alto a baixo seguia pela rua deserta em direção ao Passeio Público, o capuz cobrindo-lhe a cabeça inspiraria sentimentos funestos em quem fosse capaz de enxergar os seres ausentes como ela. Caminhava com as mãos agasalhadas nos bolsos do casaco e ia sem pressa.

Sob o céu encoberto o crepúsculo se arrastava naquele dia úmido de inverno, a noite vinha acompanhada de uma garoa incessante que caía desde o início da tarde e se mantinha persistente; uma brisa leve e constante movia galhos e folhas das árvores centenárias e a friagem se espraiava sem obstáculos. De repente a Sombra invisível transpôs o portão aberto do Parque da Cidade e seguiu pelas aleias cobertas de piche que serpenteiam os canteiros; sobre o chão molhado havia poças d'água aqui e acolá; o lago de água esverdeada sofria de abandono; os bancos dispostos pelo caminho encontravam-se esquecidos, desertos. A maioria da fauna local fugiu cedo para suas tocas e ninhos, uma minoria abrigou-se sob as pedras dispostas em forma de gruta diante do lago. Para qualquer lado que se volvesse o olhar na tentativa de encontrar um ser humano, o vazio lúgubre era absoluto. Depois de percorrer todo o Parque a Entidade espiritual saiu pelo portão do lado oposto e continuou seu trajeto pelas calçadas solitárias de pedras portuguesas.

Na medida em que as horas avançavam, a temperatura despencava e o frio se intensificava, as pessoas procuravam abrigo e desapareciam das ruas. O Ente invisível atravessava o cruzamento quando um homem numa motocicleta parou entre dois carros diante do sinal vermelho. Se fosse possível ver a desenvoltura da Morte subindo na garupa do motociclista dir-se-ia que os dois se conheciam e haviam marcado aquele encontro. O sujeito tinha acabado de sair do trabalho, era seu destino até então ajuntar-se com alguns amigos, num bar, alegrar-se e descontrair. Para tanto, com o sinal verde ele deveria avançar e dobrar à esquerda, porém, uma mudança brusca de pensamento o fez cruzar duas pistas para seguir à direita, no caminho de casa.

Consciente do perigo que é andar sobre duas rodas ele trajava adequadamente os equipamentos de segurança, no entanto, sem um anteparo no veículo, a chuva e o vento gélido golpeavam-no impiedosamente a frente do corpo. Normal que fosse assim, tendo em vista o modelo da viatura. Anormal era a friagem que, de súbito, começou a agredir seu corpo pelas costas causando-lhe arrepios e contrações musculares. O incômodo provocou certa curiosidade, perguntou de si para si mesmo: serão sintomas de febre o que estou sentido ou terei sido acometido por um resfriado? Dirigia apreensivo com o sentimento de abandono, de vazio mórbido que angustiava seu coração desde quando parou na luz vermelha do semáforo e um forte calafrio percorreu todo o seu corpo; por conta dessa preocupação foi que mudou seu itinerário e, a partir daí, a massa de ar gelado e repugnante alojada em suas costas só fez piorar os seus tremores e calafrios.

Ainda dirigiu por alguns quilômetros até que começou a passar mal. Acionou a seta, entrou no posto de gasolina e prosseguiu até a loja de conveniência. Estacionou próximo da porta, retirou o capacete, entrou e se sentou no balcão. Imediatamente pediu um expresso quente. A atendente largou o caixa, preparou a máquina e dispôs o pires diante do cliente. Em pé à sua frente ela reparou no semblante do rapaz e lhe disse:

- O senhor está pálido, sente-se bem?

Ele já havia arrancado as luvas e esfregava uma mão na outra tentando aquecê-las.

- Confesso que não! ele respondeu, e continuou: - A baixa temperatura lá fora está me maltratando, tenho espasmos e sinto o meu corpo todo gelado.

- É estranho, ela retrucou, enquanto atendia seu pedido, porque o seu agasalho parece ser o apropriado. Ou estas roupas não protegem como a gente pensa?

- Não, elas nos abrigam de verdade! Tem um porém, quando estamos andando de moto, a velocidade aumenta a força do vento, por conta disso a sensação térmica cai bastante, junte-se a chuva, e ela despenca.

- É, tem razão. Quer comer alguma coisa?

- Não, obrigado. Já estou perto de casa. Só o cafezinho mesmo. Estou aflito para tomar um banho quente e demorado, acho que só assim vou conseguir aquecer meu corpo.

Retirou o smartphone do bolso já quase sem carga na bateria e conferiu algumas mensagens no Facebook; em seguida enviou um áudio pelo WhatsApp informando aos amigos que estava indo para casa, sentia-se mal e provavelmente devia estar com febre. Por fim bebeu o último gole de café na xícara. Pagou pelo que consumiu e agradeceu o atendimento. Ainda antes de transpor a porta de vidro, recolocou o celular no bolso e notou que a bebida quente remediou seu mal-estar, mas não o suficiente para melhorar sua condição completamente.

Do lado de fora calçou as luvas, enfiou o capacete na cabeça, trepou na motocicleta e pegou novamente a estrada. Passado 15 minutos e alguns quilômetros, subiu a calçada diante da casa onde mora. A Morte desceu da garupa e se postou de frente para a rua. Quem a visse nessa posição teria a forte impressão de que ela esperava pra já o evento indefectível. O motociclista descalçou as luvas, livrou-se do capacete, e enquanto procurava a chave do portão, um bandido numa Van fugindo da perseguição policial perdeu a direção do veículo e subiu o meio-fio. Atingiu violentamente a motocicleta e arremessou o rapaz contra o muro. Sem escapatória!

A Entidade espiritual aproximou-se do corpo inerte caído no chão, com olhar atento parou por breve lapso, assegurou-se do resultado e se afastou fleumática. Seguiu caminhando pela rua escura e deserta e desapareceu na primeira esquina. Atualmente ela vem sendo muito pressentida como jamais ocorreu em nossas vidas, e pior, é sabido que continuará indefinidamente percorrendo nossos caminhos no encalço de todo ser vivo marcado pelo destino, é a sua sina.

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Dilucas ESCRITO POR Dilucas Autor
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