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Uma criança contagiada pela Beatlemania

O sol primaveril invadiu seus aposentos com um sorriso prometedor de um dia alvissareiro. Alice parodia os felinos e se levanta para a vida; mais uma jornada a ser consumida nos processos judiciais; resolvê-los com celeridade compõe o cabedal de suas obsessões.  Indigna-se como tantos processos são relegados à própria sorte pelos advogados, mormente os representantes da parte autora. Muitos se aproveitam da informalidade do processo trabalhista e somente comparecem em cartório quando notificados para o recebimento de seus honorários. Aviar a petição inicial já lhe bastara.

Rumava pelo caminho de sempre. Dirigir, num dia ensolarado, na orla da Ponta Verde/Pajuçara, exerce-lhe mágico e revigorante fascínio. Contemplativamente, divisava a magnífica enseada da Pajuçara que, para ela, se trata de a mais bonita do mundo - pelo menos, das porções vistas ao vivo, pela televisão ou internet. Nesse estado de veneração às belezas naturais de sua amada Maceió, fora abduzida pelos inteligentes comentários de Arnaldo Jabor, através da Rádio CBN, em função do show do Ex-Beatle, Paul Mccartney, em São Paulo; fazia ele digressões acerca do que esse grupo representara para o mundo, da avalanche de transformações culturais a partir dele detonada: uma revolução ideológica tranquila, silenciosa e definitiva.

De fato, os quatro jovens de Liverpool foram um divisor de gerações. É como se a história da humanidade se dividisse em antes e depois deles. O estilo Beatles foi rapidamente incorporado pela juventude da década de 60. O Brasil, por sua vez, não ficara alheio à beatlemania e vários compositores criaram versões de suas músicas, que são cantadas até então.

Não havia como evitar a evocação de sua estada, quando criança, com cerca de 10 anos, na casa de veraneio de uma família alagoana, localizada no alto de uma serra, em Gravatá/PE, onde passara muitos finais de semana, na companhia de seus pais e irmãos, o que lhe soava como estar num paraíso. Numa dessas oportunidades, fora Alice apresentada, pelo filho mais velho do casal, proprietário do memorável imóvel, aos Beathles, de quem jamais tinha ouvido falar, até então.

Ele, Antonino, um velho amigo de seu pai, que devia contar com, aproximadamente, 25 anos de idade, devassara toda sua coleção de discos e álbuns, mediante a narrativa de seu fanatismo irremediável por aquele grupo de rock. Alice não deixava escapar um só detalhe daquela efusiva declaração de amor. Antonino, por sua vez, ao vislumbrar o brilho nos olhos daquela infante, a refletir inopinado interesse em seus maiores ídolos, e, ainda, estimulado pelo escopo de conquistar uma amizade indelével, não hesitara em desfalcar sua coleção para presenteá-la com o Álbum Azul (Let it be, Somerthing etc.), apondo na capa a seguinte dedicatória: “Alice. Para você curtir até o ano 2000 e lá vai fumaça”. E lá ia fumaça mesmo! Alice fizera as contas no ano 2000 estaria com 32 anos. Haveria, pois, uma longa estrada a percorrer.

Alice casara quando o disco de vinil já estava em desuso. Seu apartamento não dispunha de toca-discos, e, certamente, nem teria espaço para isso. Fizera, de modo tácito, sua genitora de fiel depositária de todos os seus LP’s, inclusive do tão valioso Álbum Azul. Não foi assim que ela interpretou, porém. Quando já era oportunidade de resgatar seus discos, teve a desditosa notícia de que todas as suas relíquias haviam sido doadas. Não devia ser possível, mas foi isso que aconteceu. Sua formação, porém, o amor pela mãe não lhe permitiu processá-la por apropriação indébita. Ademais, toda mãe merece perdão.

Os Beatles e aquele gentil gesto de desprendimento de Antonino sempre estarão a integrar suas inefáveis reminiscências de infância. O ano 2000 já está quase adolescente e sua mãe, como não haveria de ser diferente, devidamente perdoada.

Simone Moura e Mendes

www.simonemouramendes.com

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Simone Moura e Mendes ESCRITO POR Simone Moura e Mendes Escritora
Maceió - AL

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