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Canibal por acidente

Desde cedo, aprendera que as oportunidades costumam apaixonar-se pelos discípulos mais experientes, e quanto mais versátil pudesse ser, mais condição teria de enveredar numa dimensão além do sonho infante de conquistar o céu da liberdade.  Não deixaria passar o bonde da história, tampouco o avião. Portanto, aprender novas técnicas e assimilar novos conhecimentos seria a seta sinalizadora de sua caminhada. 

Fez do trabalho, que produtivo precisava ser, por imperativo da sobrevivência material, uma aventura. Menino inquieto, avesso aos estudos teóricos, mas apaixonado pela máquina motorizada - uma condutora do seu movimento, do ir e vir em descoberta do mundo, através do solo, da água e do ar - que jamais encarava um sonho, como um mero delírio; e o sonho do momento era ser piloto privado de avião monomotor, ou, quem sabe se algum dia não pilotaria sua própria aeronave? Voar baixo, voar alto... Voar, afinal!

 Não dispunha dos recursos financeiros suficientes ao custeio das horas de vôo exigidas para concessão do brevê, que é a habilitação para pilotar aviões. Não ficaria, contudo, estancado nessa impossibilidade, eis que a vida costumava lhe apontar alguma direção, em que pese lhe cobrasse o preço do imponderável. E dessa vez não foi diferente: conhecera, nos idos de 1975, um missionário que voaria até o Xingu no escopo de catequizar uma tribo indígena; não aguardaria o segundo convite para ir de co-piloto no pequeno avião, e, dessa forma, lograr as horas de voo faltantes ao seu intento.

Segundo relata, quando um cacique da tal tribo falecia, seus integrantes comiam de sua carne a fim de incorporarem sua valentia, seu heroísmo, sabedoria e conhecimento. Nem mesmo os visitantes estariam a salvo de tal prática, daí por que o pretenso piloto não come carne de carneiro ou bode até os dias atuais. Não lhe importava, porém, saber qual pedaço do corpo do cacique morto lhe atravessara a garganta sob o aguardo ansioso do índio ofertante, mas não se esquece da semelhança com tais iguarias.

Todavia, após narrar toda a sua insólita aterrissagem no Xingu, como solução de vivência recalcada, o amigo ouvinte, sabendo que a sogra daquele publicaria um livro, marotamente, perguntara-lhe se o brevê ainda vigia. Um tanto empertigado com o objetivo da pergunta, quisera primeiro sabê-lo, ao que o amigo (?) opinara: em caso positivo, o lançamento da obra editada seria facilitado. Ufa! Após um suspiro aliviado, já que o assunto do ritual tribal não voltara à tona, nessa hora, na forma de a mais ingrata e impertinente interpretação, o canibal por acidente o convidara, de antemão, a acompanhá-lo nesse fantástico voo cultural, com direito a brinde com espumante nas literárias alturas.

 

 

Simone Moura e Mendes

(visitem: www.simonemouramendes.com )

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Simone Moura e Mendes ESCRITO POR Simone Moura e Mendes Escritora
Maceió - AL

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