A subversão dos valores humanos
Sua vida é pautada no fazer justiça, no encontrar meios, consentâneos com o princípio da razoabilidade, de proteger o defectivo econômico em face da força suprema do capital. Conforme lhe grita o caso concreto, arrima-se, não somente no ordenamento jurídico, como também na sociologia e filosofia jurídicas, sem se destituir dos princípios éticos e morais em que foi forjada sua formação pessoal.
Como de costume, acordou cedo. Além dos agradecimentos, rogou a Deus que lhe impregnasse de sabedoria para desempenhar com nobreza o papel de dizer o direito das partes, que no dia vigente sempre fizesse melhor que no antecedente. Beijou os filhos, dissera-lhes o tanto que os ama, aplicou-lhes os cuidados e as orientações pertinentes, sem se descurar dos mais mínimos detalhes. Desceu para a parte baixa da cidade, em direção ao seu local de trabalho, onde se realiza, na existência física e espiritual.
Ao avistar o mar, abriu o vidro do seu carro, respirou fundo e concentrou-se na imensurável grandeza das obras de Deus, naquilo que jamais o ser humano arremedaria. Era salutar desligar-se dos litígios jurídicos, ora silenciados nos autos dos processos, no banco traseiro, a fim de que a serenidade do mar inspirasse a sua vocação conciliadora.
O trânsito, que fluía dentro da normalidade, ia ficando cada vez mais congestionado. O que teria acontecido? E o que quer que fosse foi bruto, subtraiu-lha daquele estado contemplativo. Justamente no cruzamento anterior ao seu destino, um veículo havia abalroado uma motocicleta. Os curiosos disputavam espaço no local; os motoristas reduziam a marcha à quase inércia, em prol de uma espiadela; não, contudo, para prestar auxílio, tão-só no afã de satisfazer sua atração pelo trágico.
O piloto da motocicleta coxeava de um lado para o outro; apresentava indícios de necessidade de cuidados médicos. O motorista, por sua vez, a despeito de qualquer aparente avaria na lataria do veículo, com o capuz aberto, esmerava-se em averiguar, ainda assim, a eventual existência de algum dano no motor. Era só o que enxergava, aliás – um possível prejuízo material, essencialmente remediável. A preocupação, além de sua, transferiu-a aos circunstantes, certamente, na intenção de utilizar-se de uma testemunha, se fosse o caso. E o piloto da motocicleta claudicando...
A índole justiceira daquela jovem ficou perplexa. Ao vivo, assistia à submissão da dignidade da pessoa humana ante a super valoração da propriedade. E perplexa, foi fazer o que lhe cabia fazer, bem ali, no prédio da justiça. Foi cumprir o ideal a que se propunha, desde sempre, e sufocar o realismo animal protagonizado pela sociedade capitalista, individualista: a subversão dos valores humanos.
Simone Moura e Mendes
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