Tema Acessibilidade

Uma chance recíproca

A mocinha de olhar pálido fora levada, por uma senhora, de uma fazenda das adjacências de um interior alagoano, mediante a promessa de tomar conta de um bebê na capital - seu neto. Filha de cortador de cana, empesteado pelo alcoolismo e de uma mãe de delicada saúde que recebia um mísero salário através da prestação de serviços na casa grande da fazenda.  Luzia da Silva, premida pela urgente necessidade de auferir ganhos, a fim de que pudesse colaborar com os pais no sustento de seus sete irmãos e alguns sobrinhos, contivera a nostalgia pela partida do pequeno rincão onde foram ficadas suas raízes.

Forte como quem é do campo e, não dos olhos, mas dos pensamentos de Luzia vertiam copiosas lágrimas durante as duas horas de percurso. “Quando verei minha família? Será que suportarei a saudade? Como serei tratada por essas pessoas?” Tais perguntas açoitavam a mente daquela menina que sequer houvera visto macarrão, pizza, elevador, casa vertical e muitos outros elementos inexistentes no seu povoado. Por outro lado, já seria capaz de ansiar por um destino diferente do da mãe e do de suas irmãs.

Com muita reserva, Luzia foi recebida pelo casal, pais da criança, que, por seu turno, não pretendia alguém que tivesse de dormir em seu compacto apartamento. Tem jeito para tudo, interviera timidamente a menina. Quantos anos você tem, minha filha? Perguntou-lhe a mãe do bebê, que se surpreendeu com a constatação de que a aquela garota com a pele inteiramente malhada pela pitiríase versicolor - mais conhecido como “pano branco” -, não sabia de sua idade. Comovido com sua figura esquálida e sem horizontes, o casal acolhera-a em seu lar; comprara-lhe cama desarmável, roupas novas, itens de higiene pessoal, instado pelo desiderato de proporcionar um mínimo de humanidade àquele ser.

Luzia fora levada ao pediatra do bebê e submetida a inúmeros exames laboratoriais, através do que ficara constatado ser hospedeira de seis parasitas, dentre eles ameba, giárdia, schistosoma mansoni, e, de todos, fora devidamente tratada.  A generosa médica aplicara-lhe uma verdadeira aula de higiene por ela assimilada durante toda a sua vida. Foram também tratados os seus doze dentes careados.

Saúde restaurada, quisera saber os pais do bebê se Luzia havia estudado. Respondeu-lhe esta: fiz três vezes a 2ª série – primária – no meu povoado, até a professora dizer que eu não dava para os estudos. Luzia, após ser regularmente matriculada numa pequena escola de um bairro próximo, ano a ano, conseguira desconstituir a sentença daquela professora, eis que deu prosseguimento aos estudos até ter de interrompê-lo no penúltimo ano do segundo grau para assistir à sua filhinha recém-nascida, com a promessa de concluí-lo.

Casada e mãe de família, feliz proprietária de um pequeno imóvel, onde se abriga com a filha e o marido, Luzia tem a certeza de que não se deve dilapidar a esperança de um ser humano, sob pena de ser-lhe decretada a morte emocional. 

Ela permanece, porém, por opção pessoal, oferecendo fielmente seus préstimos à mesma família, mas no exercício dos plenos direitos de cidadã, entre eles o registro em sua CTPS, o recolhimento regular da previdência social, seguro saúde particular para si e para sua filhinha, porte do Título Eleitoral.

Já tendo desenvolvido consciência crítica acerca dos fatos circundantes, lamenta Luzia que ainda hoje possam existir professores míopes.

Simone Moura e Mendes

www.simonemouramendes.com

(Publicada em O Jornal, edição de 08/04/2012)

Attachment Image
Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons. Você pode copiar, distribuir, exibir, executar, desde que seja dado crédito ao autor original. Você não pode fazer uso comercial desta obra. Você não pode criar obras derivadas.
0
1 mil visualizações •
Denuncie conteúdo abusivo
Simone Moura e Mendes ESCRITO POR Simone Moura e Mendes Escritora
Maceió - AL

Membro desde Setembro de 2010

Comentários