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Presvisão de alegria sem previsão de chuva

Por seu espírito de jipeiro, afeito às trilhas de barro e lama por entre as matas e canaviais alagoanos, não hesitou em aceitar mais um convite dos primos de festejar o São João na Fazenda FD. Acompanhou-se da esposa, filha, genro e do pai, em seu carro de tração 4 x 4, além da irmã, cunhado, sobrinhos e amigos, distribuídos em dois carros de passeio. O encanto da fazenda, além de estar na prazenteira hospitalidade de seus proprietários, reside na sua difícil posição geográfica: no alto da serra, a cerca de 500 m do nível do mar, em certo isolamento da civilização. Há quem diga que ela fora descoberta de helicóptero...

O enfrentamento dos 5 km de curvas e acentuados aclives em terreno escorregadio, propício à derrapagem, sobremodo quando chove, é logo esquecido quando encontrada a simpática propriedade no cume da serra, circunscrita em um magnífico vale premiado por uma porção de Mata Atlântica virgem a esconder nascentes de água, que suscita em seus visitantes a sensação de estarem no topo do mundo.

“Dá para subir a serra com esses carros de passeio, Tom?”. “A previsão é de sol para o fim de semana; então, subam, pois o máximo que pode acontecer é ficarem ilhados lá em cima; mas temos mantimentos suficientes para uma semana, não se preocupem! - risos. Eu, como não tenho pena de arranhar meu carro, que, por sinal, já está pago, subo e desço de qualquer jeito, embora, quando chove, o terreno não respeita nem o meu 4 x 4” – respondeu o empolgado anfitrião.

Comidas típicas, vinho e cerveja faziam a alegria daquele reencontro familiar. As conversas graduavam de acordo com o estado etílico. Discutiam-se temas jurídicos eloquentemente e, nesse particular, ele, o pai e o genro dominavam o cenário. Num piscar de olhos, a conversa aterrissava nas potencialidades para flatulência e as experiências a ela relacionadas, que iam sendo narradas, despudoramente, pelos homens protagonistas, sentindo-se confortáveis na intimidade do seio familiar; à custa, porém, do constrangimento de algumas mulheres que, como sói ocorrer, em vão, tentavam içar o rumo da prosa para temas insólitos.

O cunhado assumiu o leme e levantou-se para melhor interpretar uma piada; no ápice do entusiasmo, sob a oitiva ansiosa dos presentes, inclinou bruscamente a cabeça na direção da mesa e, antes de fornecer o desfecho, acertou a careca na taça de cerveja. Rendeu-lhe dois cortes. O sangue lhe escorria, copiosamente, sob o pânico de alguns. Contudo, o único risco que ele temia era haver arrancado um dos tufos dos cabelos implantados no afã de disfarçar a implacável calvície. No dia seguinte, todos novamente reunidos à volta da mesa, alguém lhe apresentou um copo descartável a fim de que pudesse concluir a piada de forma segura – risos.

Num dos quartos, aparelhado com uma cama de casal e dois beliches, dormiram ele, a esposa, a filha, o genro e o pai. Oportunidade ímpar para o encontro das involuntariedades noturnas de cada um – roncos em vários ritmos. Na alta madrugada, ele se remexe na cama e bate na grade do beliche, o que promoveu uma reação medrosa do genro: “tem alguma coisa aí, tem alguma coisa aí...”. A resenha no café da manhã, então, já prometia fortes emoções.

Após a chegada de outros primos, que ali passariam parte do domingo, todos desceram à parte mais plana da propriedade para postarem-se à beira do açude. O anfitrião acendeu a lenha, a fim de preparar, numa panela de barro, caldinho do peixe ali pescado pelas crianças, quando, abruptamente, do céu verteu uma chuva torrencial. Olhos arregalavam-se por todos os lados. Ensimesmados, cada um se perguntava: como e quando seria possível descer a serra? De então por diante o destino, por certo, seria uma incógnita.

Dois dos primos resolveram descer em seus veículos 4 x 4, em face de seus inadiáveis compromissos; uma hora após mantiveram contato através do único celular que dava sinal. “Não desçam, pois passamos 40 minutos para completar a descida da serra e nossos carros sofreram algumas avarias, a exemplo de arranhões e lanterna quebrada; o risco de descer o despenhadeiro também é grande”. Pronto! Ele e a esposa teriam de trabalhar na segunda-feira, a filha apresentaria seu trabalho de conclusão de curso, o genro cumpriria horário no estágio... Afinal, qual chefe creria na dantesca história de alguém haver ficado preso no alto de uma serra após um final de semana de “farra”? – sinistro!

 “Vamos arriscar, é o jeito!” Sob a expectativa dos que ficaram, aventurou-se nas sinuosidades do caminho; em algumas ocasiões, o carro deslizava atravessado na pista; num dos acidentes da estrada, a esposa resolvera descer e, com auxílio do genro, tentar evitar que o carro colidisse com a barreira. Este, não obedecendo ao comando do freio, por um triz, imprensou os frustrados heróis. Ela, sua consorte, ainda sofreu uma pancada no joelho, sem maiores consequências, no entanto. Ao retornarem ao veículo, sob a estupefação da esposa, aproveita a oportunidade para mais um de seus chistes: “ainda bem que não arranhou meu 4 x 4...”

Enfim, concluiu o percurso mais experiente para novas dificuldades noutras aventuras da espécie; inclusive, já prometendo aos primos regressar, ainda nesse inverno, com um comboio formado por outros amigos jipeiros, que não costumam recuar de tais desafios, para os quais atolar, desatolar, derrapar ou correr riscos calculados está sempre no “script” de suas histórias.

Simone Moura e Mendes

(Publicada em O Jornal, edição de 31/07/2012).

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Simone Moura e Mendes ESCRITO POR Simone Moura e Mendes Escritora

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