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Nem para morrer serve!

Criar ardis, dissimulações, simulacros: tudo isso compõe o repertório de artimanhas do ser humano para desembaraçar-se das várias situações vexatórias do cotidiano, sejam elas ponderáveis ou não. Tende mesmo à fuga do enfrentamento, a todo custo, das represálias da vida à conta de suas ações ou omissões, das que extrapolem as leis ou o código social. Essa assertiva é mais bem confirmada nos locais onde falece o rigor da punibilidade. Especificamente, aqui, no Brasil, quem não já ouviu falar ou logrou valer-se do “jeitinho brasileiro”?

Destarte, a fim de evitar qualquer tipo de restrição à liberdade ou ao patrimônio, o indivíduo recorre à sua indizível capacidade inventiva, como foi o caso de Manoela, que saíra em seu Gol 1000 disposta a passear pela formosa orla de Maceió, acompanhada de seu genitor. Na verdade, a aquisição de seu veículo viera bem antes de qualquer intenção de providenciar a Carteira Nacional de Habilitação. É seu hábito empurrar a vida com a barriga. Nas ocasiões de risco, seu filho conduziria; caso contrário, apelaria à sorte, usaria de sua boa lábia, teria seus meios, enfim.  Ah! Não vai acontecer – sempre assegurava de si para si. Mas, um dia, a sorte tira férias!

Manuela, ao dobrar a curva do Cais do Porto, divisa uma blitz do DETRAN. Ao ouvir dois silvos breves, embora não dominasse as regras de trânsito, preferira não arriscar. Pois, então, entrar para a estatística das abordagens daquela operação era fato. Precisava pensar rápido numa saída pela tangente. Enquanto o guarda percorria o 50 m que, de propósito, o fizera distanciar do veículo, Manuela determinara ao pai: rápido, pai, passe mal, vai, vai, pai! Seja bom intérprete! – soou ríspida sua voz de comando. Não fracasse na interpretação, ouviiiiiu! Sem questionar, o pobre pai pendera a cabeça para o lado direito, como se desfalecido estivesse. O susto e a forma como fora instado a isso pela filha atônita, transtornara-o a ponto de ficar verdadeiramente pálido. Contudo, muito verbo tivera de ser despendido por Manuela para que o guarda os liberasse. E, certamente, o fizera por receio de que a cena fosse real.

Mais à frente, ao invés de se enamorar com o mar, de intenso azul, da pajuçara, Manuela vociferava impropérios ao pai, indignos de uma respeitosa filha. Acusava-o de quase ter o carro apreendido porque ele não fora um artista convincente.  Ele, por sua vez, diante de tão infame condição, quedou-se impassível. Todo o seu percurso de regresso a casa, estivera ele imerso em devaneios, como a fazer uso inconsciente de um mecanismo de defesa para despistar-se da realidade.

Ao chegar ao trabalho, no dia seguinte, Manuela, conforme lhe era usual, debulhou um rosário de agruras. “Não suporto mais o peso de meus pais, filho, tia-velha, empregada e da matilha voraz. E, querem saber? Nem pra fingir-se de morto o escalafobético do meu pai serve!”

Simone Moura e Mendes

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Simone Moura e Mendes ESCRITO POR Simone Moura e Mendes Escritora
Maceió - AL

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