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O descaminho do arroz doce

Dona de certas bizarrices dignas de nota(?). Detesta cebola, odeia pimentão, não gosta de churrasco, café, chá, arroz doce, sopa fora de casa – aliás, toma sopa, às vezes, por algum obséquio à sua saúde. Há alguns anos, foi passar, com o marido e os filhos, o final de semana na casa de casal de amigos, em Aldeia; no dia anterior, na ocasião de escolher os gêneros alimentícios no supermercado, o anfitrião, ansioso por impressionar as visitas com uma estada farta, quis saber da esposa do quê a amiga gostava: “gosta disso?” Não! “Gosta daquilo?” Nãão!! E daquilo outro? Nããããooo!!! “Paciência, mulher, o que sua amiga come, finalmente?” Olhe, amor, que eu saiba, queijo, castanha e caranguejo...

Coitado do marido dessa criatura, quando não encontra companhia para dividir o prato num restaurante, fica restrito a uma ou duas opções do cardápio; isso, quando não tem de escutar a esposa “garçom, quero essa prato nº 08, mas exclua a cebola, o pimentão, isso e aquilo”. Quando o vê indócil, indaga-lhe: “como é que à beira de 24 anos de casamento, você ainda não se acostumou com isso? Deixe eu me resolver com o garçom, rapaz!

Conta-se que, em visita à capital americana, sentou com o esposo e um casal de amigos num restaurante que servia pratos rebuscados, na sua opinião, é óbvio. Após sondar todo o cardápio – como costuma fazer quando sai para comer pizza, e, alfim, escolhe sabor milho verde com mussarela –, não confiou em fazer qualquer pedido por não saber traduzir todos os ingredientes escritos em inglês. “Não estou com fome” – foi o jeito mentir para não provocar maiores polêmicas. Dirigiu-se à vitrine de comida e descobriu um pão de bonita aparência; quando todos à mesa se deliciavam com suas escolhas, ela, com a maior naturalidade, sem o mínimo indício de ironia, desabafou, para surpresa dos demais: “gente, pense num pão bom!!!!” – isso virou piada.

Ela sabe que mastigar um pedaço de cebola pode causar-lhe o maior vexame, é como se estômago virasse, involuntariamente, pelo avesso, tão violentas são as náuseas. O marido, por sua vez, tivera de abdicar desse gosto, por preferir ter seus beijos apreciados pela esposa, que tanto lhe aprecia o hálito in natura; portanto, desde sempre, mantém a dieta como se não comer cebola fosse cláusula de um pacto antenupcial.

Sua ojeriza a arroz doce, no entanto, tem um passado histórico. Antes de casar, morou dois meses com a avó, que comia de marmita. Todos os dias, antes de ir ao trabalho, fazia-lhe o mimo de deixar o café da manhã disposto na pequena da cozinha: duas rodelinhas de inhame, duas fatias de queijo coalho e, invariavelmente, uma porção de arroz doce, preparado com a sobra da marmita do almoço da véspera – jogar comida fora? – nem pensar! As privações materiais de alguma época lhe serviram de lição. Destarte, “o restô dontê” era customizado.

A neta passou a ficar meio inapetente – até desconfiava por que; só conseguia ingerir metade do queijo, metade do inhame, mas o arroz doce aparentava-lhe nauseabundo. Cheia de culpa, punha-o num saquinho e, numa atitude politicamente incorreta, em várias vertentes, jogava-o no esgoto da esquina, com receio de decepcionar as boas intenções da vovó, até que não suportou o peso na consciência e confessou a transgressão ao namorado – hoje marido - que, por seu turno, lhe recomendou jogar a “iguaria francesa” no vaso sanitário e dar descarga. Até os dias atuais, a despeito de a avó padecer de Alzheimer, suplica-lhe não conta o descaminho do arroz doce.

Não obstante rogar aos seus filhos, desde que eram bem pequenos, que se alimentem com verduras, frutas, grãos integrais, pouca gordura, ela mesma, mantém quase os mesmos hábitos alimentares dos tempos de tenra. Com propósito de brincar com sua própria limitação – muito inconveniente, por sinal, sobremodo, quando se encontra em ambientes de pouca intimidade -, diz que seu paladar só tem tolerância por aquilo que começa com “c” – sim, alguns, porque a cebola é com “c”. Então, gosta de Cláudio, castanha, caranguejo, “queijo”, “siri”, camarão, camurim, cioba, carapeba, cerveja, chocolate... - huuummm! Contudo, essa brincadeira esconde meia verdade.

Simone Moura e Mendes

www.simonemouramendes.com

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Simone Moura e Mendes ESCRITO POR Simone Moura e Mendes Escritora
Maceió - AL

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