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Os apelos da pelada

Num charmoso chalé, localizado na paradisíaca Praia de Maragogi, amigos reuniram-se. Um ambiente aprazível, acolhedor, onde gargalhadas, cerveja e churrasco eram fartamente compartilhados. Ali, o único temor vigente era o de morrer de sede ou de fome. Conversava-se de tudo, a exceção de coisa séria, por certo. A pedra de toque do encontro era, invariavelmente, as amenidades, no exercitar o viés cômico de cada um.

A ala masculina sabia que jogar pelada em fim de semana é uma prática temerária. Não fosse somente pelas informações captadas em jornais, sejam escritos ou televisivos, compunha o grupo duas competentes e renomadas médicas; por ironia do destino, uma cardiologista e uma reumatologista. Todavia, debalde foram as admoestações e advertências das “doutorinhas”, embora em férias, sempre alertas nos cuidados com seus entes queridos. A regra estaria na iminência de ser, mais uma vez, confirmada: “santo de casa não faz milagre” e, “em casa de ferreiro, espeto de pau”.

No declinar da tarde, carregando muita cerveja na cabeça e um tanto de acréscimo de gordura corporal, os homens, dos menores em idade aos mais velhos e maiores em corpulência, renderam-se aos apelos da redonda. Imprimiram nova funcionalidade à bola de voley e foram para o campinho daquele complexo de lazer. Às mulheres não havia senão se juntarem aos “co-co-cós, co-co-cós”, aos “cucurucuruuuús”, aos “gulu-gulu-guluuuús”, dos animais cuja tranquilidade fora violada, para detonarem palmas irônicas e apupos legítimos aos “alterocopistas” em campo.

Cada partida que se findava, suspiros aliviados eram percebidos na seleta torcida: mãe/irmão/cunhada/esposa/amiga... Os passantes fortuitos não continham o riso; houve até quem detivesse seu veículo para fotografar o espetáculo da boa forma. “Na frente, na frente, eu fiquei”, gritava um dos atletas mais premiados por células adiposas, sob as gargalhadas de todos. Do de silhueta ainda esguia, por decreto da idade, descobriu-se que, além de daltônico, que de fato é, também vesgo, pois dos seus pés nasciam as mais indesperdiçáveis oportunidades de gol. Era bola na trave, do seu lado esquerdo, direto, ou na copa do vultoso cajueiro impassível em sua beleza ameaçada; mas encaçapar mesmo a redonda foi-lhe missão impossível. Seu corpo, conquanto delgado, via sempre no chão o seu mais fiel destino. A cerveja descia-lhe para os pés, e estes investiam todos juntos contra a bola, e aí era “tibuft” na zaga, “esplafet” no ataque.

Não houvesse físico capitulado ao cansaço, ouve-se uma voz serena: “quebrei o dedo”. Era o goleiro com a mão erguida e nela via-se o mindinho na posição de 90 graus em relação a si mesmo. “uiiii”, “hum”, “ai” – as interjeições iam-se multiplicando. Corre dali e daqui: “põe o dedo no lugar, cara!”. Como se em sua mão não houvesse qualquer terminação nervosa, puxou o mindinho de volta para o lugar, fazendo para os presentes um movimento contínuo com todos os dedos, como a indicar que estava apto a voltar ao gol. Muitas palmas e vivas recebeu o rapaz do dedo de borracha.

No dia seguinte, dos homens, das mulheres e das crianças, nada se falava, além da resenha do grande clássico da véspera. Entrementes, passa o rapaz do dedo machucado, desdizendo sua composição de látex; ele era mesmo de carne e osso, não lhe negava o edema exibido. Estava já à procura de um posto médico a fim de imobilizá-lo e não deixar que um dedinho luxado o eximisse do luxo daquele domingo de sol e mar exuberantes.

Novas peladas, regadas a churrasco, cerveja e alegria, estão prometidas.

Simone Moura e Mendes

(Publicada em O Jornal, edição de 22/05/2012)

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Simone Moura e Mendes ESCRITO POR Simone Moura e Mendes Escritora

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