Tema Acessibilidade

O irrealismo real

Não, não estava delirando. Será?! Apalpou-se. Apertou a mão cúmplice do esposo. Acarinhou o rostinho aveludado da filha – recém-chegada da pequena cidade onde fez “High School” para receber os saudosíssimos beijos e abraços dos pais. Sorriu para os amigos... Deixou-se fotografar e a máquina digital salvou sua imagem no cartão de memórias. Não, não era delírio. Teve certeza, então.

 O riso e as palmas esfuziantes da plateia fez sua atenção aterrissar na encenação muda de dois palhaços, que, à guisa dos espetáculos hodiernos, circulavam entre os espectadores, espargindo humor em todos os vértices do deslumbrante teatro do Hotel Bellagio –aliás, não fariam tanta graça se falassem, pois que seu inglês é ”very small”, conforme costumava dizer quando barganhava a paciência de seus interlocutores eventuais.

Uma porção da plateia era o seu palco. O espaço onde dividia a alegria, quase embriagada, de poder comemorar o aniversário de 17 anos de sua filha “caçula”, em estilo, dantes, inimaginável. O abrir das cortinas vermelhas revelou o espetáculo “O” - talvez, o mais bonito, segundo depoimentos vários, do Cirque Du Soleil. Las Vegas, ali, para si, se desdisse. Não era somente luxúria: jogo, mercado do sexo, o mais alto bradar do capitalismo, onde o dinheiro podia comprar quase tudo...  Pôde essa cidade “sui generis” soletrar a fantasia pueril e densa, a magia, o encanto da arte capaz de estancar o fluxo respiratório.  Como conceber corpos e mentes se articularem tão harmonicamente para produzir aquele show indimensionável?! Descrevê-lo, aliás, jamais retrataria com justiça a abundante beleza daquela realidade mágica que seus olhos não continha.

Duas espessas lágrimas toldaram-lhe a visão. Voltou-se para suas lembranças. Absteve-se do ambiente - como conseguiu? Individualizou-se, egocentricamente no seu mundo refratário. Um vídeo-tape de sua remota infância, abrupto e absurdo, precipitou-se. Estava, ora, sob a lona furada de um circo de subúrbio; ora, mordiscando economicamente a maçã do amor na Praça Afrânio Lages, mais conhecida como Praça da Faculdade; ou inebriada com o picadeiro dos circos sazonais da Praia da Avenida, aplaudido mediante a compra do bilhete mais barato; também, nos que eram montados no Cais do Apolo - quando foi morar em Recife -, revisto, vez por outra, na imagem do monóculo azul que ainda guarda na gaveta das recordações...   

Estava ali. Voltou a si. Mas soube que ainda não podia morrer. Não podia. Pois urgia realizar muitos outros sonhos irrealizáveis.

Simone Moura e Mendes

(Publicada em O Jornal, edição de 10/07/2012)

Attachment Image
Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons. Você pode copiar, distribuir, exibir, executar, desde que seja dado crédito ao autor original. Você não pode fazer uso comercial desta obra. Você não pode criar obras derivadas.
0
1 mil visualizações •
Denuncie conteúdo abusivo
Simone Moura e Mendes ESCRITO POR Simone Moura e Mendes Escritora
Maceió - AL

Membro desde Setembro de 2010

Comentários

Ataniel
Ataniel

Quando sonhamos com algo que está ao nosso alcance, tudo vira-se realidade, não é verdade? Só que existem pessoas que na maioria das vezes prende-se tanto ao imaginário que acaba-se frustado, tendo grandes decepções. Por isso, é melhor a gente ter mais um pouco de paciência, viver dia após dia com a esperança no amanhã, mesmo que isso custe quase uma vida inteira. "... A esperança só morre, quando acreditamos que com ela morremos..." Um forte abraço! Adorei o texto!