Afetos traídos
Beatrice fora criada num lar forjado por um ambiente turbulento, onde pululavam traições, agressões físicas e morais; onde o mais forte aviltava, subjugava o mais fraco, que, nesse caso, era a mulher, sua mãe, incapaz de enxergar por si só a sua força interior para driblar as vicissitudes contingentes em sua vida ou, talvez, não o quisesse fazer, porque tivesse ganhos subliminares e, portanto, ininteligíveis ao observador descuidado. Seria isso objeto para profundos estudos psicanalíticos, sociológicos, antropológicos, inacessíveis, pois, a Beatrice, por sua pouca idade, por possuir ligações consangüíneas e afetivas com os protagonistas da guerra e, sobremodo, por não deter base científica para tal.
Seu sofrimento era contínuo, temia desestruturar-se como pessoa. Nada, porém, que o tempo não pudesse ir arremessando para os espaços remotos da memória. Durante o processo de maturação, não conseguia Beatrice manter-se como observadora imparcial, o que, conquanto, lhe fosse render severas conseqüências emocionais a requerer-lhe potente capacidade de sublimação, fizera-lhe recriar em si um mundo alternativo, no qual idealizara a existência de criaturas probas, desinteressadas, fiéis. O crescimento emocional fizera-lhe optar por parodiar o “jogo de Pollyana” e fazer as pazes com o otimismo, com a face alvissareira da existência humana.
Cultivara Beatrice o princípio de que um traidor é um ser com apenas resquícios de humanidade, um ser amoral, uma caricatura humana, um psicopata. Ou, por outro lado, definia-o como um covarde, cuja vida seria permeada por conflitos existenciais, sentimentos de culpa e receio de que o destino pudesse operar uma inversão no seu papel: de bandido a vítima. Para ela, Beatrice, mentir, enganar, ludibriar, sobremodo a quem se ama, seria viver uma vida paralela a si mesmo.
A vida, todavia, é uma faca que, desembainhada apresenta, de um lado, uma lâmina limpa e reluzente, e do outro, o sangue de um coração traído.
Simone Moura e Mendes
(Crônica inédita)
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