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O expediente das galinhas velhas

Sexta-feira, véspera do “sábado de Zé Pereira”.  O ritmo de “Vassourinha” já havia se instalado no imaginário daquela pequena coletividade de servidores de uma das unidades judiciárias trabalhistas, ameaçando-lhe descer para os pés. Todavia, o senso de responsabilidade, inexoravelmente, impunha-lhe o dever de obstinada concentração nos inumeráveis processos, silenciosamente, dispostos nas estantes, porquanto sabe que em cada um deles subjaz a esperança de estômagos famintos e carcomidos pela revolta do suco gástrico trabalhando em vão. Não, não havia como esquecer a natureza alimentar das verbas trabalhistas.

Um notificava, outro juntava documento aos autos, outro liquidava a sentença... – tudo em muita sintonia até se cumprir todo o iter processual, que culmina na consequente entrega do direito à parte a que a ele faz jus. Aqui e acolá, uma alusão jocosa, uma piada, a fim de fluidificar o ambiente com as tramas da alegria. Quem chega com qualquer mínimo atraso é logo saudado com um “boa noite” formal (quase sinistro!) do colega, de cuja voz tem a imposição de “locutor do além”: boa nôooiteee!! – a denúncia está feita. Inopinadamente, ele, também, incorpora o Agnaldo Timóteo: “Mamãe, mamãe, mamãe... – não passa disso.

Em certa altura do expediente, eis que o “locutor do além” recebe a encomenda realizada por sua esposa para os dias do carnaval, na paradisíaca Barra de São Miguel, em seu solar, localizado em um condomínio onde o menos aquinhoado singra a piscina de Jet ski: duas galinhas velhas abatidas e guisadas, a título de tirar o gosto da “Anísio Santiago”.

À medida que a hora avançava, a fome ia junto e o cheiro da iguaria adentrava as narinas dos colegas, sem prévia licença. O “Magaly” do grupo se manifestou, enfim: “rapaz, vamos dividir essas galinhas! Depois você dá um stop na esquina e compra dois galetos de “geladeira de cachorro”, e diz à sua mulher que as galinhas foram interceptadas pela Vigilância Sanitária”. Tá maluco, cara?! Tá querendo que eu fique de castigo, logo na festa de momo?” – esbravejou o dono das galinhas.

A turma não perdoou essa crise de sovinice do “locutor do além” – logo nele, que todos os dias chega com queijo e pão quentinho, impreterivelmente, às 7 horas, compartilhando-os com todos! Ainda que houvesse descansado as galinhas abaixo de sua mesa de trabalho, bastou uma ida ao toalete para o “Magaly” escondê-las num dos tantos armários da sala. Aquele, então, não deixou ninguém trabalhar até resgatá-las.

Quando o conseguiu, desabafou: “seu bando de ‘olho grande’, vocês querem que eu apanhe da minha mulher? Seu eu quisesse passar pela porta de casa sem essas galinhas, dar-se-ia início à terceira guerra mundial”. Nesse ínterim a entregadora de documentos adentra na sala e, descontextualizadamente, ouve falar nas galinhas, sem, contudo, se dar conta de que se trata de bípedes. Arregala os olhos e vocifera - como se em si houvesse um trauma recalcado: “se o meu marido chegasse com duas galinhas, apanharia ele e elas – huum, ora se não!!!”.

Simone Moura e Mendes

(blog: www.simonemouramendes )

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Simone Moura e Mendes ESCRITO POR Simone Moura e Mendes Escritora
Maceió - AL

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