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Menininha: vítima de si e do descaso

Sua estatura minguada fizera com que mantivesse a alcunha de Menininha. Menininha foi sua identidade por toda a vida. Se dizem que as baixinhas são de temperamento irascível, aquela não fugia à regra, porquanto nenhum desagravo passava incógnito às suas admoestações; seu gênio indomável lhe rendera, porém, muitos desconfortos existenciais, tanto no âmbito físico quanto no mental; e, quando se vira dependente dos cuidados de outrem, entregou-se à depressão, irreversivelmente – sua  vida perdera a cor, vegetalizara-se. Não apenas frágil na compleição física, mas, também, de ânimo, incompetente para lidar com os reveses inevitáveis das encruzilhadas; postava-se, Menininha, emocionalmente, em oposição à fé que a tradição familiar católica lhe ensinara.

Antes, mulher vaidosa, a tal ponto que preferia deixar de custear o plano de saúde em prol da manutenção dos cuidados com o corpo; cremes e mais cremes para hidratar a cútis e estancar os efeitos deletérios da idade, sem qualquer atenção aos ungüentos que pudessem aliviar os abalos anímicos. O fato de haver, ao lado de mais três irmãos, se tornado remanescente de uma prole de treze filhos, culminara num temor incapacitante da morte, sobremodo quando sua irmã obteve o diagnóstico de diabetes e dislipidemia, tendo a vida ceifada por um AVC (acidente vascular cerebral). Determina-se, a partir de então, pois também estaria com as mesmas disfunções, conquanto os exames e os médicos lhe afirmassem uma boa saúde, a uma alimentação natural, sem arroz ou pão branco, sem doces; tão-somente grãos integrais, e em quantidades moderadas, comporiam seu cardápio.

A família não soube explicar, mas acha que as severas privações alimentares por que se submetera Menininha, fora determinante para seu declínio mental; dentre seu compêndio de alucinações estava o de confundir carne com lagartixa... Cerrava dentes e lábios a fim de não receber o alimento que lhe era oferecido, causando tormentos vários em seus amoráveis cuidadores – sua única irmã e sobrinhos -, molestados, ademais, com seus impropérios e rompantes de agressão física. Quando já rendida, a família tentara interná-la numa casa de repouso; a médica, compadecida com a sua fragilidade, indicara a menos nefasta da rede pública, que, ainda assim, causaria asco até a um refugiado de um campo de concentração nazista. Menininha, a despeito dos inconvenientes que produzia, não merecia perecer naquele cemitério de loucos. Voltara, então, ao seio da família, como instrumento de expiação para todos e de todos os pecados. Cristo, afinal, não se evadira do calvário.

Menininha foi tratada em casa, por obséquio da humanidade de um psiquiatra que a adotara. Revigorou-se um pouco mercê do empenho indômito da família, até contrair uma infecção pulmonar. Dessarte, fora internada num hospital público – que sina! Inconformada, sua irmã desacreditava que a mais abjeta criatura viva seria imerecedora do tratamento degradante daquele açougue humano, mas nada podia fazer; sua incapacidade financeira, pois, a impedia de prover melhor fim de vida à sua sempre “menininha”. Nas poucas horas em que lhe era facultado entrar na ala dos enfermos graves, assistia aos horrores do destino dos seus impostos e os dos cidadãos brasileiros: urros silenciosos nos corredores de uma morte lenta, sem ouvidos misericordiosos. Perecia ali, inclusive, seu ente querido, com o braço edemaciado, vultuosamente, em decorrência do soro que era deixado escorrer fora da veia, sem qualquer comiseração de quem quer que fosse, olvidando os enfermeiros e técnicos que os seus salários medíocres de funcionário público poderiam lhes render idêntico tratamento num futuro, próximo ou distante. Não havia quem se aventurasse numa explicação para as mortes anunciadas - se é que houvesse uma, mesmo aos olhos de um leigo.

Menininha nasceu menininha, morreu menininha, sob os auspícios das dores que não suportaria gente grande. Jaz seu corpo e resta insepulta no coração de seus familiares a inclemente memória de seus atrozes sofrimentos. Tristeza, saudade... revolta, máxime quando vislumbram seus míseros ganhos sendo dilapidados pela sanha governamental de arrecadar impostos.

Simone Moura e Mendes

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Simone Moura e Mendes ESCRITO POR Simone Moura e Mendes Escritora
Maceió - AL

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