Arauto de sua liberdade
“Pai, se eu ler essa Bíblia todinha, poderei comer um pedacinho de pão”? Sem questionar a do filho ou a própria fé em Deus, ele não hesitou em responder que sim. Era-lhe tormentoso assistir ao filho desejoso de regalar-se com o mais primário dos alimentos, aquele que foi multiplicado pelo Rei dos Reis a fim de saciar a fome de uma multidão. A criança, portadora de doença celíaca, uma patologia autoimune que inibe a absorção de nutrientes pelo intestino delgado, já tivera algumas internações hospitalares após ingerir glúten.
Certa madrugada, sob o teto exuberantemente estrelado da Praia de Francês, mediante o testemunho da lua em seu estado de plenitude, entabulara, sóbria e contritamente, uma conversa, de Pai para pai, com Deus; rogara-lhe que se apiedasse do sofrimento do filho que Ele lhe confiara. A criança, por seu turno, cumpriu a promessa de ler o Livro Sagrado, a versão infantil de que dispunha, de capa a contrapa. Pai e filho consanguíneos foram atendidos pelo Mestre Supremo. O pão passou a ser consumido, como alimento do corpo e do espírito, enquanto que os sintomas da doença jamais voltaram a manifestar-se.
A religiosidade sempre esteve ínsita em toda a família, como crença e conduta de vida. Contudo, à medida que o menino crescia, sua religiosidade revelava-se como vocação inelutável e a opção pelo sacerdócio se fazia iminente. Frequentava a missa com os pais e irmãos, tornou-se coroinha em sua paróquia, lia a Bíblia com devoção. Seu destino estava traçado.
“Pai, vou ingressar num seminário, em São Paulo. Vou seguir a minha vocação para a carreira eclesiástica”. Sem se despir da condição de orientador, ponderou: “Meu filho, você tem noção do que isso representa, de tudo aquilo de que terá de abdicar”? Como o olhar fixo e resoluto do filho não denotava dúvida, percebera a impostergável necessidade de colocar-lhe a par da realidade da vida: “saiba você, então, que sua escolha implicará em celibato, renúncia aos prazeres próprios da juventude, à vaidade, aos bens materiais... Se você não sabe, meu filho, muitos padres não suportam, ou enganaram-se quanto à própria vocação, e buscam materializar suas pulsões sexuais de algum modo... Blababá, blababá, blababá... “Pai, caso me negue esse direito, estará furtando a minha felicidade”!
A interveniência da mãe, aflita com a escolha do filho, inclusive, por não conceber ser privada de tê-lo em sua convivência, foi no sentido de que o esposo deveria impor-se como pai e obstaculizar aquele ímpeto de seu garoto – ele não lhe daria netos. “Não, meu amor, não posso cercear a liberdade de ninguém, inclusive, de um filho que tanto amo”. Providenciou, por fim, todo o necessário à sua partida. Contenta-se em vê-lo no período de férias, quando retorna ao lar da família, impecavelmente, dentro das tradicionais vestes da instituição religiosa. Contenta-se em vê-lo feliz e convicto de sua vocação sacerdotal.
Simone Moura e Mendes
(Publicada em O Jornal, edição de 08/05/2012)
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