Tema Acessibilidade

ESTÁ CHOVENDO DINHEIRO EM BRASÍLIA

• Atualizado

 

                 Está chovendo dinheiro em Brasília. Deu na televisão do rico e, talvez, no rádio do pobre. Eu disse: “no rádio”; cuidado com as segundas intenções. Sempre dá na televisão dos ricos; às vezes, no rádio do pobre também. E com minha determinação e minha genética, irei a Brasília, onde está chovendo dinheiro.  O dinheiro que está chovendo em Brasília não é para qualquer um não, é para mim, que tenho genética e determinação. Deu na televisão esse fato, que em Brasília está chovendo dinheiro. E eu nasci com genética para herdar o dinheiro que está chovendo em Brasília e com determinação para conquistá-lo, que é meu por direito e por genética. Eu tenho pedigree, meu pai e mãe e avô e avó e bisavô e bisavó têm pedigree também, genética superior, e vou buscar o dinheiro que está chovendo em Brasília. O dinheiro que chove em Brasília e que deu na televisão do rico  e provavelmente no rádio do pobre não é para os brasilienses nem para os brasileiros sem pedigree, que nasceram para servir a pessoas como eu, que têm genética superior. O dinheiro que chove em Brasília e que parece que deu no rádio do pobre também é meu por natureza. Ninguém se meta a mexer no dinheiro que chove em Brasília e que deu na televisão dos ricos e no rádio dos pobres. E só agora acordei para essa realidade: a realidade do dinheiro que está chovendo em Brasília que é meu por natureza e que deu no rádio do pobre e na TV dos ricos e que é meu por herança genealógica. Possuo o status quo necessário para ir a Brasília buscar o dinheiro que lá chove torrencialmente. Vou atrás dele vestido em meu terno importado dos Estados Unidos, made in USA, com minha gravata de riscado inglesa, made in England e meu relógio rolex suísso. Minha genética me garante isso, que mereço por direito o dinheiro que está chovendoem Brasília. Vou com meu terno importado dos Estados Unidos e com minha gravata inglesa. Sem esquecer o rolex suísso. Vou sentar em poltronas especialmente preparadas para mim, poltronas azuis como o céu de Brasília. Usarei perfumes ainda mais franceses que os que uso. Beberei Scotchs ainda mais escoceses que os que eu bebo diariamente. Scotchs escoceses do século XIX, porque meu paladar superior não permite sentir o gosto das destiladas brasileiras. Mas as poltronas não são sofás, que fique bem claro isso. Elas são de estofados azuis especialmente decoradas e planejadas para mim. Tomarei conta de uma sala com vista panorâmica, pendurarei quadros de Portinari nas paredes e minha secretária, que também é uma parenta de sangue azul, darei a ela alguns milhares dos reais que estão chovendo em Brasília, sempre choveuem Brasília. Por isso tudo, saiam da frente, inferiores; desobstruam o caminho, abram passagem para um descendente de raça superior ir para Brasília buscar o dinheiro que lá está chovendo; não boteis vossas mãos inferiores no dinheiro que chove em Brasília e que deu na televisão dos ricos, especialmente. Abram passagem para mim, que uso rolex suísso e visto terno importado dos Estados Unidos. Sem esquecer a gravata de riscado... Inglesa. Desobstruam, vamos! Desobstruam o caminho, gentes incautas; com vossas camisas de 20 reais, vossos perfumes do meio de feira e vossos relógios de plástico do mundo de 1 real. Não toqueis no meu dinheiro, no dinheiro que chove em Brasília e que deu no rádio dos pobres e na TV dos ricos e que é meu por natureza.

            Minha pele é sedosa, branca, meu cabelo é bonito, meus olhos são azuis, tenho um metro e oitenta de altura e dirijo um importado italiano. Meu importado italiano tem vergonha de andar nas estradas esburacadas, junto dessas carroças dos pobres, junto dessas mulas dos representantes do povão, junto dessa plebe subserviente que não sabe que está chovendo dinheiro em Brasília e que deu na televisão dos ricos e que é meu por natureza. Por isso, preciso me apressar para ir buscar o dinheiro que está chovendoem Brasília. Meupai já está lá.

            Andando pelas ruas da cidade, com meu importado italiano e meu terno americano e minha gravata de riscado inglesa e meu rolex suísso e sempre pensando no dinheiro que está chovendo em Brasília, sou atrapalhado pelas carroças dos pobres que nasceram para trabalhar para manter pessoas como eu, descendentes dos nobres. As carroças dos pobres, e que não vêem o dinheiro que chove em Brasília, tentam atrapalhar o livre trânsito do meu importado italiano, de rodas cromadas e guiado via GPS. As carroças dos pobres expelem muita fumaça. As carroças dos pobres fazem muito barulho e atrapalham o som Novix do meu carro, que toca Pavarotti e Mont Serra Cabalé. A fumaça das carroças dos pobres entra pelos vidros do meu importado, impregnando de mau cheiro os estofados importados do meu carro italiano. A fumaça das carroças dos pobres me incomoda, por isso vou para Brasília, buscar o dinheiro que lá está chovendo e que deu na televisão dos ricos. Depois disso, vou comprar uma mansão nas ilhas virgens, depositar dinheiro na Suíça, comprar um jatinho executivo e dar um passeio com a Júlia Robert, Madonna e qualquer outra grande mulher objeto. Vou comprar tudo isso com o dinheiro que está chovendo em Brasília e que é meu por direito e genética. Ando mais um pouco nas ruas e, barulhentas bicicletas com caixas de som, fazendo propaganda de políticos pobres, atrapalham o livre trânsito de meu importado da Itália. Quando eu pegar o dinheiro que está chovendo em Brasília e que deu na televisão dos ricos, vou criar uma lei proibindo a circulação das carroças fumacentas dos pobres nas mesmas vias que trafegam carros importados como o meu, que veio da Itália e custou mais de um milhão de reais. É uma obscenidade, misturar meu importado italiano com essas carroças fumacentas dos pobres. Mas, enquanto não me apodero do dinheiro que está chovendo em Brasília, tenho que trafegar no meio desses homens fedorentos, suados, peles em espelho com suas carroças expelindo fumaça para tudo quanto é lado e deixando mau cheiro no meu importado italiano. Meu importado italiano não merece trafegar entre essas carroças fumacentas desses pobres que não percebem que está chovendo dinheiro em Brasília e que é meu por natureza. Mas é comum eles não perceberem nada, afinal, eles não têm pedigree para perceber isso nem perceber coisíssima nenhuma. Quanto a isso, quando me apoderar do dinheiro que está chovendo em Brasília, vou exilar o Darcy Ribeiro, por tentar esclarecer ao povão que eles vivem numa miopia social. É um perigo deixar esse povo bem informado! Eles não percebem que está chovendo dinheiro em Brasília e que é meu por vontade divina. É bom que tudo fique assim mesmo, do jeito que está, pois é da vontade divina que existam pessoas de genética superior, como eu, que vê o dinheiro que está chovendo em Brasília, e pessoas de genética inferior que isso não percebem.

            Sigo vagarosamente nesse trânsito que precisa ser mudado, para deixar meu importado italiano exibir a pujança de suas centenas de cavalos e esconder os cavalos dos pobres que sujam as ruas. Precisa ser mudado para que os pneus do meu italiano não se suje com o óleo que cai do escape do carro, digo carroça, dos pobres... Sigo para Brasília, onde está a chover dinheiro. Sigo vagarosamente... Sem poder gerar a potência de centenas de cavalos que têm meu importado italiano. Começa a chover e vejo um pobre limpando o pára-brisa da carroça dele com um paninho sujo, barba molhada, camisa de 10 reais ensopada. Eu não preciso disso, porque meu importado italiano tem dispositivos anti-chuva, anti-embassador e sigo quase tranqüilo entre as carroças dos pobres. O sinal fecha. E uma fileira enorme de carroças enfileiram-se, deixando nítida a superioridade do meu importado italiano, comprado por meu pai que já pegou do dinheiro que está chovendo em Brasília. Osinal abre e um atrevido portador de uma carroça fumacenta atreve-se a querer ficar na frente do meu carro importado italiano, fazendo-me demorar a chegar a Brasília onde está chovendo dinheiro de rolo. Deu na televisão: em Brasília está chovendo dinheiro, está chovendo dinheiro em Brasília, uma chuva de dinheiro está chovendo em Brasília e eu vou buscá-lo, pois é meu por direito de sangue. Meu pai já está lá pegando do dinheiro, consta que minha irmã também já pegou; que a secretária da família também, que meu cunhado já pegou também do dinheiro que chove em Brasília. Comonão me apercebi disso há tempo? Que está chovendo dinheiro em Brasília? Ora, minhas empresas por herança faturam milhões. Milhões oriundos do dinheiro que está chovendo em Brasília. Meupai agora está usufruindo do dinheiro dos pobres que não percebem que, em Brasília, chove dinheiro. Chove dinheiro em Brasília; em Brasília chove dinheiro. Nunca me esquecerei desse fato que: em Brasília chove dinheiro, chove dinheiro em Brasília. Eeu vou buscar desse dinheiro que chove em Brasília de qualquer jeito porque ele é meu. É meu o dinheiro que chove em Brasília. Euvou criar uma lei proibindo essas carroças dos pobres de trafegar querendo competir com o meu importado italiano. Criarei uma rodovia com o dinheiro que chove em Brasília apenas para o meu importado italiano demonstrar a potência de um motor de centenas de cavalos. O pobre ficará de fora, nas calçadas, com suas carroças estacionadas, vendo-me passar com meu carro italiano, meu terno dos Estados Unidos, minha gravata inglesa e meu rolex suísso. Em Brasília está... está em Brasília... chovendo...chovendo em Brasília... dinheiro. Somente um homem como eu, de estirpe, de status, de pedigree merece se apossar do dinheiro infinito que está chovendo no Planalto Central. Deu na televisão dos ricos e no rádio dos pobres. 
 

Erisvaldo Vieira, outubro de 2004.



Inspirado no texto:
O importado vermelho de Noé

(André Sant'Anna)

Copyright © 2012. Todos os direitos reservados ao autor. Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.
0
1 mil visualizações •
Atualizado em
Denuncie conteúdo abusivo
Erisvaldo Vieira ESCRITO POR Erisvaldo Vieira Escritor
Palmeira dos Índios - AL

Membro desde Julho de 2012

Comentários