A feijoada.
Eu adoro feijoada e não tenho problema algum de flatulência por causa do feijão, que isso fique logo bem claro. Apesar de gostar tanto, é raríssimo eu saborear esse prato delicioso. Houve um tempo em que minha mãe fazia bastante, todavia passou. Agora, com a saúde debilitada ela está proibida de ingerir alimento gorduroso, e, como quem faz a comida é a própria, já fica esclarecido que esse quitute na minha casa doravante não tem a menor chance. Na casa de minhas irmãs ou de meus irmãos, de tios, primos... nunca experimentei esse prato típico, nem mesmo em dias festivos. Se já comi feijoada na casa de algum parente, faz muito tempo e não guardo lembrança.
Para facilitar o entendimento do que tenho para contar vou informar mais alguns detalhes antes de entrar no assunto em definitivo. Eu trabalho com representação de tecido, quando, a cada mês, a capacidade de produção da fábrica se aproxima do limite e o fechamento das vendas é iminente, os representantes são logo avisados. Todos querem aproveitar a política ainda vigente para fazer o máximo de negócios e melhorar o desempenho no que for possível, sendo assim, o ritmo dos trabalhos acelera automaticamente até o encerramento, e, no dia D, especificamente, se for mês de demanda forte, fica uma correria, uma agitação, um estresse... quase insuportável, difícil é dar conta do recado.
Foi em 2002, mês de Março, ao meio dia de uma sexta-feira o prazo limite para o fechamento das vendas dos artigos da linha profissional, área da qual faço parte. Nesse dia eu precisava dar assistência ao maior número possível de clientes, devia apresentar novos produtos, atualizar informações cadastrais, averiguar títulos em aberto, e mais, pegar os pedidos de última hora com aqueles retardatários contumazes que sempre tem. Tudo deveria ser feito na parte da manhã e consegui.
O dia amanheceu nublado, agourento, e as nuvens pesadas no céu ameaçavam desabar em chuvarada a qualquer momento. A correria começou cedo e logo dei conta do recado, atendi todos os compromissos no período estipulado e foi este o resultado: a cota do mês encerrou ao meio dia, como estava previsto; as visitas agendadas para aquela manhã foram atendidas a contento; a apuração de títulos em aberto, respondidos depois de tratados caso a caso; os pedidos retirados no talão, enviados à fábrica antes de encerrar o prazo. Por volta das 14h da tarde, enfim, eu disse, FIM. O resto do dia: "livre".
Eu me encontrava no centro da cidade exatamente no cruzamento da Av. Pres. Vargas com Rua Uruguaiana. Não havia almoçado até aquele instante porque a correria não permitiu que eu parasse sequer para descansar, foi então que me dei conta de um barulho desagradável no estômago. Lembrei-me de comer alguma coisa e esse pensamento foi suficiente para aumentar desesperadamente a minha fome. Animado com o meu bom desempenho no trabalho decidi me presentear com uma deliciosa feijoada no Só Feijão.
Esse Restaurante, localizado na esquina da Rua Alcindo Guanabara com Rua Álvaro Alvim de frente para a Câmara dos Deputados, hoje não existe mais. Funcionava como uma pensão e ocupava o primeiro andar e o térreo de um antigo prédio do século XIX. A comida era saborosíssima e por isso muito disputada. Todos os dias úteis da semana comensais famintos formavam uma grande fileira na porta de entrada. Às sextas-feiras, principalmente, dependendo da hora, o número de clientes era enorme e o maior custo pago pela refeição era justamente encarar aquela maldita fila. Apesar de o restaurante ocupar dois pavimentos no edifício, o espaço no salão do térreo tanto quanto do primeiro piso era mínimo, relevante era a capacidade dos donos do negócio que conseguiam dobrar a quantidade de fregueses atendidos no horário mais concorrido do almoço se valendo de um expediente simples: numa mesa pequena, eu diria, individual, duas pessoas eram servidas ao mesmo tempo. Não estou exagerando, parece coisa de japonês, mas eram brasileiros mesmo.
Pelo adiantado da hora, apesar do dia da semana, achei que fosse ser fácil chegar, escolher um local para sentar e almoçar tranquilamente. Venci a distância do ponto onde eu estava até o Só Feijão numa caminhada rápida. Ainda de longe, ao me aproximar, notei que o famigerado grupo de pessoas esperando na porta não estava mais lá, então pensei: "Vai ser mole!" Já na entrada do estabelecimento fui informado de que a casa estava lotada, porém, caso eu aceitasse esperar, garantiram-me, eu seria chamado para ocupar o primeiro assento livre. Aceitei.
Eu aguardava do lado de fora do prédio quando começou a cair uma garoa fina que incomodava e ameaçava engrossar. Sem marquise no local, nem próximo, e desprovido de chapéu, recostei-me à parede do edifício o mais que pude a fim de não ser atingido pelos pingos da chuva. O convite para entrar, que me fora prometido, demorou. Enquanto isso, outro sujeito, evidentemente com fome e tão ávido quanto eu para devorar uma refeição, aproximou-se, bateu à porta, abriu e falou algo. Em seguida o cara se encostou ao prédio ao meu modo e assim ficamos os dois, um de cada lado da porta do restaurante, em pé, feito sentinelas grudados à parede. Ele era o segundo numa fila que começava a se formar; eu, o primeiro, todavia, ignoro se ele fora avisado desse detalhe, porque não nos falamos. Passados 5 ou 10 minutos de espera, um casal se levantou pra ir embora. O recepcionista da casa veio até nós, abriu a porta de vidro, convidou-nos a entrar e apontou para o local onde havia cadeiras disponíveis. Apressei-me para ocupar a mesa liberada e sentei numa das cadeiras. Sem olhar para mim o sujeito se achegou e, sem cerimônia, aboletou-se calado na outra cadeira disponível. Eu não contava com essa atitude da sua parte, pelo contrário, achava que ele, vendo-me já acomodado, não se sentisse à vontade e decidisse esperar outro lugar vagar. Ledo engano. Ficamos os dois, mudos, frente a frente um do outro esperando o atendimento de algum funcionário.
Embora ciente de que, no local, duas pessoas em cada mesa recebiam atendimento ao mesmo tempo, fiquei decepcionado de ter aquele esfomeado assentado à minha frente. Era meu desejo, naquele dia em especial, ter o prazer de degustar minha feijoada sozinho, instalado onde não houvesse gente ao meu lado ou diante de mim; assim tão próximo, menos ainda. Paciência, a resignação venceu a decepção. O garçom veio nos atender. A solicitação do meu indesejado consorte foi um prato feito. Para mim a feijoada individual, mas completa. O pf, mais prático e rápido de preparar chegou primeiro, e o esfaimado não perdeu tempo, imediatamente caiu dentro. Logo depois recebo o meu pedido. Como era composto de várias tigelas ocupou todo o espaço disponível da pequenina mesa. Lembro que eu ainda pensei: "se esse malandro também pede uma feijoada, nem com a maior boa vontade do mundo seríamos atendidos juntos neste arremedo de mesa, porque não caberia". Com toda a área abarrotada de minúsculas travessas e mais o pf do camarada ocupando um espaço importante da mesazinha, só metade do meu prato coube sobre aquela prancha ridícula, a outra metade ficou de fora, na direção do meu colo. Não atentei para esse detalhe e, valendo-me dos talheres, comecei a preparar o meu almoço escolhendo o que havia de melhor dentro das vasilhas ali dispostas. Normalmente, só coloco pra eu comer quantidade suficiente para satisfazer o estômago, o que não é muito. Nesse dia, porém, perdi as referências e aprimorei as medidas. Do feijão que esfumaçava dentro da terrina deixada pelo garçom foram 4 ou 5 colheradas; em seguida a pimenta, que eu adoro, dobrei a dose; uma leve cobertura de arroz, que eu não dispenso; algumas salpicadas de farofa com torresmo; depois a couve picada.
Enquanto eu caprichava na montagem do meu prato, a minha fome aumentava junto de forma descompassada, e a cada ingrediente que eu adicionava, o desejo de comer me deixava progressivamente ansioso. Eu já salivava só de imaginar a comida, e, quando ela chegou e foi posta sobre a mesa, a minha boca ficou cheia d'água. Eu já estava no limite da aflição com o cheiro gostoso do alimento, e a fome estava me maltratando. Precisava acabar de vez com aquilo, e rápido! Olhei de lado, o prato estava cheio, no entanto, visto das laterais ainda não formava aquele monte central característico, mantinha a horizontal plana. Peguei o frasco com azeite e derramei o óleo generosamente sobre o alimento. Era chegada a hora de escolher os pedaços da carne, os mais suculentos, do tipo, costela, lombo, orelha... O que restasse na tigela ficava garantido para o final. Agora, sim, lá estava ele, flagrante, o monte Everest indisfarçável. Hora de provar. Respeitando o ritual passei a mão na taça de tequila e mandei de uma golada só. Depois de estalar a língua na boca e com o garfo na mão direita, eu lembro bem, misturei um pouco de tudo: o feijão com a pimenta, mais o arroz, um pouco da farofa com torresmo e a couve picada. Tudo umedecido com azeite numa porção suficiente para aquela primeira garfada. Servi-me. Mastiguei, degustei e engoli. Delícia! Troquei de mão os talheres e, com o auxílio de um e do outro, apanhei um suculento pedaço de lombo no topo daquele monte e o trouxe até a borda do prato, na parte em que estava praticamente colada ao meu peito. Com destreza girei a carne para facilitar o corte e espetei o garfo, quando pressionei a faca para tirar a fatia desejada, amigo... pode acreditar... a louça virou de ponta cabeça e caiu em cima de mim derramando a comida no meu colo, entornando pelo chão afora, sujando a porra toda até se espatifar em vários pedaços ao atingir o piso de ladrilho. Do meu lado esquerdo, passado o corredor, o garçom tinha juntado 4 mesas para acomodar 7 rapazes que almoçavam em confraternização. Um deles, obeso, com certeza acompanhou a evolução dos acontecimentos e previu a tragédia que eu provocaria dali a instantes; imagino que não foi difícil antever; e ficou torcendo fervorosamente para que fosse o mais catastrófico possível, porque, bastou o prato emborcar no meu colo, pra ele gritar: "Alá, alá, alá..." Tão alto que até levei um susto, e sou capaz de assegurar que não fui o único. O gordo orelhudo gritou e esticou um braço que mais parecia um torpedo decorado com um dedo denunciador apontando na minha direção; não satisfeito e para garantir a atenção de todos à nossa volta ele ainda bateu ferozmente sobre a mesa, várias vezes, com a palma da outra mão aberta. Do lado de fora a chuva desabou, mas foi dentro do restaurante que ecoou o estrondo medonho do trovão. Caraca! Tenho a sensação de que isso aconteceu ontem. Você ri, né? Tudo bem! Eu dei motivo, vacilei.
Naquele instante, com todos no salão entregues ao riso, perdi completamente a naturalidade, principalmente ao ver um prato de feijoada tão primoroso quanto o meu desastrosamente esparramado no chão. Que decepção! Lamentei. A solidariedade do pessoal da casa, que correu em meu auxílio, até ajudou a amenizar minha vergonha, embora não tenha sido capaz de restaurar o prazer que eu experimentava momentos antes. Rapidamente limparam o assoalho e agilizaram outro prato, o qual solicitei ao garçom que deixasse para me trazer só depois que o camarada que compartilhava a mesa comigo já tivesse ido embora.
Pra finalizar, esta foi até agora a refeição mais sem graça que eu já comi em um restaurante.
Comentários